quinta-feira, 30 de outubro de 2025

As rua engole



 

Ele tava no corre.
Entregava marmita, Ifood, pagava boleto nos banco e fazia uns bico de moto-taxi.
Ele já não era mais moleque. Tinha trinta e pouco.
Mas depois que a firma faliu ele teve que se virá, porque tinha que pagá a pensão da menina e ajudá cas conta da casa da ex-mulher.
Ele tentô otros trampo, mas ninguém tava contratâno.
Mandô currículo, conversô, mas as porta tava fechada.
No começo ele estranhô.
A vida nas rua é diferente.
Conheceu uns mano do corre.
Uns só trabalhava mêmo.
Otros fumava uns baseado pra passá o tempo, enquanto esperava as corrida dos aplicativo.
Outros fazia uns aviãozinho pro tráfico.
Isso ele nunca fez.
Ele começô a comer marmita entre um corre e outro.
Depois ele começô, — quando dava — comer uns salgado.
Depois só tomava café e fumava um baseado junto com os mano.
Mas ele não era desse tipo. 
Não era bruto.
Não precisava entrá na onda dos irmão errado.
De vez em quando ele lembrava que tava com fome.
Trabalhava desde cedo até as onze da noite.
A moto de vez em quando furava o pneu e ele de vez em quando passava mal.
De vez em quando ele vomitava.
Um dia vomitô sangue.
Sentia tontura.
Quando sentia tontura ele comia um doce ou tomava café.
Os dia foram ficano ruim pra ele.
Pediu dinheiro emprestado pruns cara errado.
Pagô, mas levou um pau uns dia antes, porque tava atrasado.
O médico disse que a pressão dele tava muito alta.
Disse que tava desnutrido e com falta de várias vitamina.
O médico disse que ele tava com infecção na urina. Acho que é assim que fala.
Disse que era magro demais, e que mesmo assim a diabete tava quase pegano ele.
Acho que era um lance de hormônio e falta de dá umas dormida.
Ele só pensava no corre.
Parece que a rua engoliu ele.
As rua não é fácil...
Eu até acho que ele tava com pobrema de cabeça.
Podia sê a canceira.
De vez em quando ele falava do trabalho antigo.
Da ex-mulher.
Da filha...
Chorava.
Mas não podia pará de fazê as coisa.
Os corre loco das rua.
Ele tinha que pagá a pensão em dia, senão a Maria mandava os home atrás dele.
Um mês ele atrasô.
Dormiu na cadeia três dia.
Até os mano do corre se juntá e ir lá tirá ele.
Pagaro a pensão e ele foi liberado.
Hoje ele tava locão! Foi entregá quatro café da manhã, foi pagá boleto em cinco banco, depois foi entregá várias marmita, e quando encostô pra trocá ideia co's mano do corre, as três da tarde, ele disse que tudo tava ficano preto.
Deu tontura.
Uma sede que ele não aguentava.
Bebeu quase um litro d'agua.
Caiu duro no farol.
Um cara chamou o SAMU.
Mas não deu mais tempo.
Agora ele não tá mais no corre.
Acabô.
Foi conhecê Jesuis... 


terça-feira, 28 de outubro de 2025

Xadrez

 



 

— Bom Dia!
— Bom dia!
— O senhor poderia responder uma rápida pesquisa que estou fazendo?
— Que pesquisa?
— A diferença de oportunidades na sociedade brasileira em relação à raça e classe social.
— Nossa! Que bacana! Posso sim.
— Qual a sua cor?
— Como?
—Sua cor? Negro, branco, amarelo, pardo?
— Uai? A senhora não está me vendo aqui?
— Eu estou vendo, mas o senhor tem que declarar a sua cor.
— Eu acho que sou pardo.
— Por quê?
— Porque sou moreno, bem moreno.
— Seu pai era negro?
— Não… na verdade meus avós paternos vieram já casados lá de Portugal, minha avó materna era italiana e meu avó materno era bem pardo, mais escuro do que eu, mas não era negro.
— Então vou marcar aqui que você é pardo.
— Isso a gente pode ver só de olhar pra mim.
— Eu sei, mas a gente tem que chegar nessa conclusão depois de investigar direito, a nossa metodologia é científica.
— Ah tá… Legal!
— Qual seu grau de escolaridade?
— Estou na faculdade.
— Certo, então vou marcar aqui branco.
— Branco? Mas eu não sou pardo?
— É pardo, mas com esse grau de escolaridade é branco.
— Como assim?
— Nossa pesquisa é científica, baseada na escola Juliana francesa inspirada na metodologia de Frankfurt da Alemanha.
— Ah… Desculpa! Então deve ser coisa séria.
— Lógico que é séria. Posso continuar?
— Pode, uai.
— O senhor tem casa própria?
— Não, moro de aluguel.
— Então é negro.
— Negro? Mas... dona? Eu não era pardo e depois branco?
— Mas nesse quesito o senhor é negro!
— Aiaiaiaiai, vai dona; continua…
— Que tipo de música o senhor gosta?
— Rock, eu sou roqueiro.
— Ah… Branco…
— Branco?
— Isso, porque quem gosta de rock é branco! Negro gosta de pagode e axé…
— Dona, de onde é esse seu método científico mesmo?
— Escola Juliana francesa inspirada na metodologia de Frankfurt na Alemanha.
— E essa sua pesquisa é pra quem?
— Para um jornal e uma TV, que agora não posso revelar.
— Hummmm.
— Continuando: Que tipo de comida é a sua preferida?
— Feijoada.
— Negro.
— De novo?
— Com que regularidade o senhor come feijoada?
— Umas duas ou três vezes no ano.
— E que tipo de comida o senhor mais come na sua casa?
— Arroz, feijão, carne, legumes e salada.
— Branco.
— Branco?
— Comida balanceada é de branco, mas vou colocar uma observação de subnutrição negra.
— Subnutrição negra!?
— Sim...
— Mas por quê?
— Porque o senhor come feijoada só duas ou três vezes no ano.
— Mas subnutrição? Olha o tamanho da minha barriga!
— Isso não importa na nossa metodologia científica.
— O senhor disse que gosta de rock.
— Disse e por isso a senhora me disse que sou branco.
— Certo! Aí, já está entendendo. Mas me diga, com qual frequência o senhor vai aos grandes shows de rock, tipo Lollapalooza, Rock in Rio, João Rock...?
— Nunca fui.
— Negro.
— Uai, mas quem gosta de rock na sua metodologia não é branco?
— É, mas quem não tem direito à cultura é negro.
— Olha dona, essa sua pesquisa é furada! Me desculpe, mas segundo a senhora eu sou pardo, branco e negro, dependendo da ocasião e isso não está certo!
— É a metodologia…
— Metodologia furada e ridícula! Eu não vou mais responder isso não!
— Branco!
— Como? 
 — Pessoas avessas a pesquisas sociais são brancas.

 


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eles


Eles falam.
Cantam.
Combinam coisas.
Dançam.
Eles são eles quando estão com eles.
Eles são os outros quando não estão com eles.
Contra os outros, eles falam.
Cantam... 
Combinam coisas.
Mas não dançam.
Eles matam.


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Ele


Ele fez tudo.
Fez em sete dias.
Ele disse como era o jogo.
Coube a nós jogarmos.
Se jogarmos bem... Aplausos!
Se jogarmos mal... O mau...


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Eu


Eu andei por aí.
Corri atrás de nada por muito tempo.
Perdi tempo.
Não encontrei o que queria. 
Aliás...
O que eu queria?


sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Nós


Do pó viemos e para o pó voltaremos.
Mas enquanto esse dia não chega...
Subimos em nossos saltos e apontamos os nossos dedos.
Somos bons em julgamento.
Excelentes em condenar.
Condenamos por qualquer motivo.
Até sem motivo.
Condenamos por atitudes que vemos nos outros.
Mas que somos mestres em fazer igual.
Talvez pior.


terça-feira, 14 de outubro de 2025

A história dos nomes apagados.


Meu tataravô, cujo nome eu não sei, veio da Itália.
Ele se estabeleceu em uma fazenda em Jaborandi.
Ali nasceu meu bisavô, que também não sei o nome.
Ele se mudou para Barretos e aqui nasceu meu avô Caetano.
Meu pai que se chamava Crisógno, nasceu em Barretos e viveu muito tempo em São Paulo, onde eu nasci.
Eu me chamo André.
Meu pai voltou para Barretos. Eu vim com ele.
Meu pai fez uma casa e comprou um terreno ao lado.
Eu construí a minha casa nesse terreno.
Meu filho se chama Samuel.
Ele um dia vai herdar a casa do meu pai e a minha.
Não sei se o Samuel se lembra do nome do meu pai.
Meu neto, que talvez saiba meu nome, um dia vai herdar tudo isso do Samuel e talvez, mais alguma coisa que ele construa, se tudo correr bem.
Meu bisneto, talvez saiba o nome do Samuel, mas seus filhos, certamente não saberão.
Por isso eu digo... Será que nós somos tão importantes e inesquecíveis assim como achamos que somos?



quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Pequeno manual prático, para poder viajar feliz



 
Você tem que nascer, tem que crescer, estudar, brincar, adolescer, aprender a amar, aprender a trabalhar, continuar a estudar.
Você não pode magoar ninguém, não se magoar com ninguém, ser inteligente, interessante, descolado, casual — uma pessoa legal.
Você tem que orar, rezar, batizar, crismar (ou não), ir à missa, ir ao culto, acreditar em Deus, acreditar na vida, nas pessoas e no coração das pessoas.
Você tem que acreditar nos políticos, nos patrões e nos padrões.
Padrões da vida, da moda, do pensamento, do momento, das gerações.
Tem que entender o culto ao corpo, o culto ao "ter" e mesmo entendendo, você tem que tentar ser... antes de ter!
Você tem que plantar uma arvore, fazer uma casa, escrever um livro, adotar um animalzinho, um cãozinho ou um gatinho, tem que ser gentil, sorrir, falar bom dia, boa tarde, boa noite, durma com Deus!
Falar "saúde", quando alguém espirrar perto de você, e falar obrigado se alguém falar "saúde" quando você espirrar.
Você tem que ser competitivo, tem que dar lucro, tem que se adequar aos padrões da empresa, tem que faturar em prol do grupo.
Você tem que vestir as camisas: do seu serviço, da sua família, do casal, do bairro, da cidade, do país...
Você tem que ir a palestras motivacionais, pois apesar de todas serem iguais sempre alguma coisa é diferente e você tem que se diferenciar.
Você tem que se emocionar com pequenos gestos, tem que fazer grandes gestos, tem que entender pequenos problemas e resolver os grandes sem se descontrolar!
Você tem que se manter “zen” ...
Se alimentar direitinho, de 3 em e horas no máximo, não comer muito carboidrato à noite e beber pelo menos 2 litros d'agua por dia!
Você não pode se embriagar, não pode brigar, não pode discutir, não pode partir para a agressão, nem verbal e nem física. Você tem que ser gentil mesmo onde não cabe a gentileza, você tem que ser sábio mesmo nas horas de burrice em meio aos burros.
Você tem que viver feliz, ser feliz, fazer os outros felizes, seus pais, irmãos, amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos...
Você tem que envelhecer feliz e viver bem. Amar seus pais e fazê-los orgulhosos de você existir, amar seus filhos e fazê-los orgulhosos de serem seus filhos, amar seu cônjuge e fazê-lo orgulhoso de ser seu cônjuge.
Essa é uma fórmula muito simplificada do que você tem que ser, conquistar e viver, mas no final de tudo, quando você for viajar daqui pra sempre, no final da sua vida, existem ainda mais duas coisinhas que são muitíssimo importantes e que você não vai poder se esquecer de fazer:
Não esperar reconhecimento de ninguém e morrer...



segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Padaria Dornele's

 

— Vamos comer pizza na padaria do Dorneles?
— Ixi, Carla... O Dorneles é chato pra caramba.
— É mesmo, Carlinha, — concordou Marcos colocando a mochila cheia de cadernos nas costas — ninguém merece aquela cara dele.
— Eu sei gente, — insistiu a menina fazendo charme — mas a pizza e os salgados de lá são top.
— Os salgados são bons mesmo, mas o Dorneles é dose pra elefante.
— Ah gente... Vamos lá!
— Bom, — ponderou Toninho ajeitando os óculos — se você quer tanto, a gente vai, né...
— Eu sabia que poderia contar com vocês! Eu tô morrendo de vontade de comer pizza de frango com catupiri.
Os amigos entraram na padaria e escolheram uma mesa perto da porta. Toninho colocou sua mochila em uma das cadeiras e foi encarar seu Dorneles, que estava de pé atrás do balcão.
— Oi seu Dorneles! — disse mostrando um sorriso falso. — Bom dia!
— Dia... 
O rapaz, sem ligar para a resposta mal educada, olhou para a estufa em cima do balcão. Examinou os salgados e perguntou:
— O senhor tem pizza de frango com catupiri?
— Não, só fazemos de quatro queijos e calabresa.
— Mas o senhor fazia...
— Fazia. Disse bem.
— Mas se a gente pedir o senhor faz pra nós três? — perguntou apontando para a mesa onde estavam seus dois amigos.
— Quatro queijos e calabresa.
— Uai? — estranhou Toninho. — Por que isso?
— Porque aqui não é uma pizzaria, aqui é uma padaria que faz pizzas para colocar na estufa. E pizza de frango na estufa, resseca e ninguém compra.
— Ah... Tá... Mas, o senhor faz os salgados e pizzas o dia todo né?
— Fazemos.
— Tem coxinha de frango com catupiri?
— Coxinha, tem.
— Deixa eu perguntar, — falou o rapaz, já sacando que o dono da padaria, além de chato, não parecia estar num de seus melhores dias. — O senhor faz quatro coxinhas de frango com catupiri e assa uma pizza de calabresa pra gente.
— Tem aí na estufa.
— Não, — retrucou Toninho tentando ser gentil — eu queria dessas que o senhor faz na hora. Pode ser?
— Se vocês quiserem a gente faz.
— Então... Mas eu queria a coxinha sem a massa, e a pizza sem a calabresa.
— Não estou entendendo.
— O senhor tem as massas e os recheios todos prontos, não tem?
— Temos sim.
— Então. O senhor pega a massa da pizza, coloca o recheio da coxinha em cima dela, espalha bem e assa. Pode ser?
— Mas eu vou cobrar quatro coxinhas e uma pizza de calabresa.
— Tudo bem, — respondeu Toninho fazendo mais uma carinha simpática.
— E o que faço com a massa da coxinha e a calabresa?
— O que o senhor quiser, — respondeu o rapaz, pensando em um lugar bem específico para ele colocar a massa e a calabresa, mas só sorriu.
— Então está bem. — respondeu Dorneles esboçando um sorriso e pensando em como aquele menino era bobo. — Vou fazer as coxinhas e a pizza pra vocês.
— Obrigado, — agradeceu Toninho — espalha bem o recheio da coxinha na massa da pizza e capricha no catupiri.



quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Até parece gente...

 

No Zoológico de Burirama,
um chimpanzé rolava na lama.
Sorrindo com todos os dentes,
para uma pessoa contente.

O gorila encabulado,
assistia as micagens assustado,
e perguntou para o colega do lado,
que também assistia passado:

— Esse aí, nem parece inteligente.
— Pois é, de tão bobo, até parece gente.
— E dizem que viemos do mesmo ancestral.
— Conversa fiada do Darwin... aquele animal.


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Cromática


A lágrima, transparente, despenca da parte branca de seus olhos e escorre por sua pele negra.
Negra como sua mãe. 
Exemplo de mulher. 
Mãe solo, trabalhadeira e feliz. 
Ela vê o mundo colorido. 
Coisa que ele ainda não entende. 


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A pequena história de nossos dias

 

Um dia um menino chamado Karl, escreveu um manifesto que dizia que o povo deveria estar no poder. Primeiro o Estado mandaria em tudo e na hora certa o povo assumiria por conta própria. 
Dividiria tudo — custos, gastos e bens — igualitariamente.
Com esse manifesto, o menino Karl estava criando o Comunismo.
Uns amiguinhos dele, principalmente um tal de Lênin, mais moderado e depois Stalin, mais malvadinho, pegaram essa idéia, entraram no governo apoiados pelo povo, mas se uniram às forças armadas e instituíram um governo onde só eles mandavam e ditavam as regras da brincadeira. 
Lênin começou a brincadeira, mas foi Stalin que fez as regras mais severas, usando de força, tortura e morte de milhares de pessoas que queriam brincar uma brincadeira diferente.
Do outro lado do quarteirão, outro menino chamado Benito, espiou o que Stalin e Lênin estavam fazendo e pensou: — Que brincadeira legal!
Então ele achou que deveria brincar também, mas de forma diferente. 
Depois de chegar no poder, assim como os vizinhos, fortaleceu suas forças armadas e matou, torturou, prendeu e sumiu com quem não queria brincar a brincadeira dele. Benitinho chamou essa nova brincadeira de Fascismo.
O menino que morava na rua do lado, ficou sabendo que esses meninos haviam inventado essa brincadeira.
A princípio ele fez amizade com todos eles, até aprender a brincar.
Então, depois de entrar no poder apoiado pelo povo, fortaleceu seu exército e diferente dos amiguinhos que haviam se voltado contra seus próprios irmãos, esse menino resolveu tomar a brincadeira dos vizinhos e declarar que só a brincadeira dele era legal.
Seu nome era Hitler.
Sua brincadeira ganhou o nome de Nazismo.
O menino Hitler achava que as pessoas da sua rua eram mais bonitas e inteligentes, por isso ele achava que deveria mandar em todas as ruas.
Acontece que, quando ele começou a atacar as ruas do lado, os vizinhos ficaram chateados. Até alguns vizinhos de outro bairro vieram entrar na briga.
O menino Benito ficou do lado do Hitler, e alguns vizinhos que já estavam influenciados por ele, também ficaram. 
Até os vizinhos de um bairro japonês apoiaram o menino Hitler.
No final, o Benitinho e o Hitlerzinho perderam.
A cidade  ficou dividida entre bairros que apoiavam as primeiras ideias do Karl, e bairros que preferiam viver livremente, sem serem dominados por ideias de ninguém.
As ideias do Karl, necessariamente precisavam de revoluções para serem implantadas. Mas a cidade não queria mais guerras.
Então, um outro menino chamado Antonio Gramsci teve uma ideia:
— E se a gente, — explicou ele a seus colegas — em vez de querer impor nossa brincadeira através da força, nos infiltrarmos nas escolas, igrejas, famílias, ruas, bairros e cidades, e formos fazendo a propaganda de que nós somos bonzinhos, que a nossa brincadeira é a mais legal e que quem pensa diferente de nós é de extrema-direita, igual ao Benitinho e o Hitlerzinho?
— Não sei, — respondeu um dos camaradinhas levantando a mão para falar — as pessoas vão saber que nossa brincadeira matou mais gente que as outras brincadeiras.
— Não... — respondeu Toninho — a gente não deixa eles estudarem! Mudamos a história e criamos nossas narrativas.
— É... — pensou um deles — pode dar certo.
— Interessante... — pensou outro em voz alta.
— Boa ideia! — concordaram todos no final.
Assim foi feito.
Hoje, outros meninos que vieram depois do Antoninho, baseando-se nas suas ideias, concluíram que as famílias têm que enfraquecer, para que o Estado seja forte.
Esses malvados também decidiram que o racismo, a homofobia e o feminismo devem ser alimentados. Porque isso enfraquece a sociedade. 
Como disse Toninho Gramsci: — Temos que dividir para conquistar.
Mas isso gerou um problema: as pessoas não conseguem mais brincar sem roubar no jogo!
Quando alguém diz:
— Eu sou cristão e amo minha família.
Logo ele é tratado como extrema-direita, e extrema-direita não pode brincar.
Mas se alguém do jogo mata outra pessoa que não brinca do mesmo lado — ele apenas matou um radical, e não fez nada de errado, afinal, tudo é em prol do nosso brinquedo.
O pior, é que aqueles que teóricamente deveriam ser mais passivos e vítimas dos malvados, estão aprendendo as falcatruas e se tornaram um novo tipo de malvadinhos.
Que também sabem mentir, também sabem matar e também sabem roubar no jogo.

Assim, as cidades estão cada vez mais divididas. 
De um lado quem quer brincar e implantar a brincadeira do Karl.
Do outro quem quer brincar a sua brincadeira, diferente. 

Descrito assim, poderia ser mesmo uma brincadeira de criança, mas infelizmente não é.
Em todas essas fases históricas e através desses personagens, milhares e milhares de pessoas morreram no mundo e ainda hoje morrem ou sofrem injustiças, em nome da "brincadeira" intolerante.

Pensem nisso!



terça-feira, 16 de setembro de 2025

O garimpeiro do tempo


Hoje encontrei uma abotoadura que meu pai me deu.
Ele a usou quando se casou com minha mãe.
Uma abotoadura banhada em ouro, com um enfeite de marfim.
Um dia esse ouro foi encontrado na barranca de um rio.
Estava em estado bruto.
O garimpeiro o separou da areia e colocou em um saquinho que guardava em seu bolso.
Ele não mostrava para os outros garimpeiros, porque poderia morrer na próxima curva do rio, e seu corpo nunca mais seria encontrado.
Mais fácil encontrar mais ouro.
Na mineradora, os trabalhadores retiraram uma rocha enorme de minério de ferro.
Esse minério de ferro foi vendido para uma siderúrgica.
A siderúrgica beneficiou esse minério e fabricou lingotes de ferro.
Vários metalúrgicos trabalharam nesse beneficiamento. 
Alguns morreram no trabalho. 
Mexer com forja, calor excessivo, ferro líquido, é muito perigoso...
Os lingotes de ferro foram vendidos para várias empresas.
Um caçador na África matou um elefante e arrancou o marfim.
O contrabandista de marfim vendeu uma carga escondida no meio de toras de madeira, passando pelo Congo até chegar em Moçambique.
De Moçambique esse marfim chegou até a China e também à Europa.
Na Europa — artistas — trabalharam esse marfim e venderam para empresas de joias.
Uma fábrica de abotoaduras comprou lingotes de ferro, ouro e marfim.
Um artesão fez a abotoadura de forma quase manual e artesanal.
O ourives banhou com ouro.
O designer, que na época não devia ter esse nome, colocou um enfeite de marfim e deu o acabamento.
Esse fabricante vendeu as abotoaduras para várias distribuidoras.
Uma dessas distribuidoras vendeu para uma joalheria.
Meu pai comprou.
Isso tem mais ou menos 60 anos.
Hoje eu peguei a abotoadura na mão...
Que fim levou o garimpeiro?
A mineradora ainda existe?
Elefantes? Até quando existirão?
A joalheria? Existe?
Quem era o joalheiro?
Quem era o vendedor da joalheria?
O ourives, o artesão, o designer...
Meu pai? Será que seu espírito está onde?
Hoje eu encontrei uma abotoadura que um dia, meu pai me deu.
Ou será que foi minha mãe?
— Guarde bem guardado! Você pode usar quando se casar. É uma homenagem ao seu pai.
Usei mesmo...
Hoje, então, eu encontrei uma abotoadura que era do meu pai, mas que ganhei da minha mãe.
E sabe... 
Um dia, todos nós seremos como o garimpeiro.



quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A festa do Arcanjo Miguel


Os amigos mais antigos do blogue, sabem que de vez em quando eu posto novamente alguns contos ou crônicas que eu considero bons. Inclusive, alguns tem mais de uma repostagem. 
Mas dessa vez, estou postando novamente esse miniconto, que é um dos que mais tenho carinho por ter escrito, para comemorar a notícia de que ele foi um dos escolhidos para entrar na segunda edição da Revista Alma, de Moçambique.
Eu participei de um concurso cultural realizado pela equipe editorial da revista e esse conto foi um dos classificados. Me senti honrado, por saber que um trabalho meu vai ser publicado no Continente africano. 
Então, para vocês relembrarem ou conhecerem: 

 

A festa do Arcanjo Miguel


Ao voltar da caminhada, Lúcio fez um carinho na cabeça de Bóris, seu fiel amigo, que o esperava balançando o rabo de alegria. Entrou em casa e foi direto tomar um banho.
Debaixo da água, pensou em como sua vida havia mudado desde a morte de sua esposa Carmen, há três anos. Nunca havia imaginado, que aos setenta anos, estaria morando sozinho, com seus filhos todos casados e morando cada um num canto do país.
Logo ele, que sempre zelou tanto pela família e pelos momentos felizes com os filhos. Mas é assim mesmo, eles crescem e querem voar por conta própria. Querem enfrentar o mundo e a vida que tem pela frente, a parte dos pais é apenas prepará-los; e deixá-los ir.
Depois do banho, com uma toalha enrolada na cintura, Lúcio foi até a cozinha e pegou um copo de leite com café, umas torradas besuntadas com manteiga, e foi até seu escritório. Enquanto o computador iniciava, ele se deliciou com seu lanchinho.
Lucio era um idoso moderno: tinha Facebook, Instagram e se comunicava por WhatsApp com seus netos, sobrinhos e de vez em quando com algum dos quatro filhos. Ele se orgulhava disso, pois era um velho conectado ao “novo mundo”.
Quando seus e-mails carregaram, ele foi abrindo um a um: e-mail de propaganda de lojas virtuais, de sacanagem que seu neto João sempre mandava, golpes tentando se passar por algum banco ou receita federal e, um e-mail de seu amigo de longa data; Marcel.
O e-mail do Marcel dizia:
“Bem-vindo a festa do Arcanjo Miguel.”
Se você abriu esse e-mail não poderá mais fechá-lo, até receber quatro presentes.
A partir de agora você faz parte da corrente do bem e coisas sobrenaturais vão acontecer com você:
1- Uma ligação telefônica inesperada.
2- Alguém vai lhe dar uma boa notícia.
3- Você fará uma viagem.
4- Encontrará a pessoa amada.
Depois de ler, encaminhe esse e-mail para toda sua lista de contatos.
— Lá vem... — resmungou Lúcio sorrindo. — O Marcel só manda bobagem.
Ele não acreditava nessas correntes, mas como estava bem-humorado, resolveu enviar só para participar da brincadeira. Depois, leu mais alguns e-mails, navegou um pouquinho pela internet até que o telefone tocou.
— Alô!
— Paaaaaaiiiiiii, me sequestraram! Socorro!
— Quem, sequestraram quem? Jonas? É você?
— Sou eu pai, é o Jonas! Eles me sequestraram, eles querem um resgate! Pai me ajude!
— C... co... como is... isso f... filho...
— Nós estamos com seu filho, Jonas! — declarou uma voz áspera. — Se você não mandar o dinheiro que vamos pedir, nós vamos matar seu filho!
— Ma... mas como? Quem é v... você?  
O coração do velho Lúcio não aguentou o baque. A dor no peito foi enorme. Cambaleando, ele foi até a calçada, onde caiu no chão. A vizinha chamou uma ambulância, que o levou até o hospital, onde foi internado direto na UTI.
Horas depois, seu filho Manoel, chegou ao hospital desesperado. Correu até o quarto do pai e acariciando sua cabeça grisalha, sussurrou com voz embargada:
— Puxa papai... Como é que isso foi acontecer? A correria da vida fez a gente ficar tão distante. Eu amo o senhor! Já avisei todo mundo. O Jonas já deve estar chegando, vê se aquenta aí.
Mesmo inconsciente Lúcio escutou a boa notícia de que seu filho Jonas estava bem e que até estava vindo.
“Deve ter sido um trote daqueles de presidiários, — pensou, mesmo sem forças para acordar do coma.”
Com o coração tranquilizado, Lúcio percebeu a seu lado uma figura muito bonita, com cabelos longos e encaracolados, sorriso no rosto e com roupa iluminada. Essa figura pegou-o pela mão e falou:
— Olá senhor Lúcio, tudo bem?
— Tudo bem quem é você?
— Eu sou um anjo!
— Um anjo?
— É... Eu vim buscar o senhor, para fazermos uma pequena viagem...
— Pra onde?
— Por enquanto não posso falar, mas vai ser muito bom, e sabe quem está te esperando lá?
— Eu sei, a Carmem.
— Como sabe disso?
— Eu li num e-mail. — respondeu Lúcio sorrindo.
— O senhor leu em um e-mail? — perguntou o anjo com cara de desentendido.
— Li... E olha que eu que pensava que esses e-mails do Marcel eram tudo besteira...



segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Balaios e botões

 

Brasil, oito de setembro de 2025

Zéfa pegou a trouxa de roupas, colocou em um balaio e num galeio só, colocou o balaio na cabeça.
Da casa dela até o barranco do riacho eram quinhentos metros.
Ela levou sabão de cinzas e uma garrafa de café.
Chegando no riacho, Zéfa começou a lavar suas roupas e cantar músicas do terreiro do Zé Modesto, painho de reza.
Logo recebeu a companhia de Gertrudes e Maria Onorina, que também chegaram com seus balaios.
Onorinha trouxe biscoitos de polvilho, que no norte, tem o nome de "mentira", porque parece um pão de queijo, mas não tem nada a não ser: polvilho, água, sal e óleo.
Gertrudes trouxe cuscuz com ovo.
As amigas lavaram suas roupas, cantaram, tomaram café, comeram seus quitutes, deram boas risadas, fofocaram muito, e logo, voltaram para suas casas contentes, para fazer o almoço para seus maridos, que voltavam da roça.
Alessandra levou as roupas sujas até a lavanderia e colocou na máquina de lavar.
Apertou um botão.
Enquanto a máquina fazia seu serviço, ela pediu uma marmita pelo aplicativo e se sentou à mesa.
Abriu seu celular no Instagram para tentar descobrir as novidades de seus amigos virtuais.
Como é triste a vida de Alessandra. 



quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Antes de partir

 



Antes de partir, é o segundo livro que eu li, do Charles Donlea — o primeiro foi, “A garota do lago”.
Eu gostei muito do primeiro livro, um policial raiz! Com investigação, suspense e reviravoltas. Tudo o que eu mais gosto em um livro desse gênero.
Então, eu esperava a mesma coisa desse segundo livro, mas... Não foi o que ele entregou, ou pelo menos não estava entregando, até as últimas 20 páginas.
A história é basicamente sobre um acidente de avião no meio do oceano, sem “aparentemente”, nenhum sobrevivente.
Nesse avião estava Ben, o marido de Abby.
Durante boa parte do livro ela viveu o luto pela perda do marido. Se enclausurando em casa, sem receber ou fazer visitas, sem participar de festas, apenas, trabalhando e tentando sobreviver.
Ela já havia sofrido pela morte de seu filho ainda bebê, e quando estava se recuperando, o destino lhe pregou mais essa peça.
Até que ela conhece Joel. Um cara bacana, mas que também tem seus pesadelos para lidar — e muitos!
Mas, com as situações apresentadas e o enredo mais ou menos definido, nós descobrimos que Ben estava vivo!
Vivo no meio de uma pequena ilha no pacífico e tentando voltar para os braços de sua amada.
No meio dessa comédia romântica, ou drama romântico — não sei como classificar direito a história — ainda aparecia de vez em quando uma mulher misteriosa, com uma carta escrita por Bem antes do acidente, falando para Abby, sobre o filho dessa mulher.
Uma traição?
Joel, aos poucos vai entrando na vida de Abby, e eles quase organicamente, vão se ajudando a enfrentar seus pesadelos e acabam se apaixonando.
O livro vai terminando e a gente pergunta?
Cadê a investigação, cadê o mistério, o suspense? Não vai ter nenhum tiro?
Não! Nenhum tiro — nenhum aparente mistério.
Será?
Acho que fui enganado!
Ou melhor... Eu fui enganado!
Nas últimas vinte páginas, o que era uma leitura quase chata, se transforma nas melhores últimas vinte páginas que eu já vi.
Uma reviravolta muito louca. Um fechamento que foi um golpe de mestre do Donlea.
Salvou o livro.
De nota 6 o livro pula para nota 8.
Olha que nota 8, é uma ótima nota para um livro.
No fim... Bom no fim, você tem que ler.
Ler e se divertir.
Minha esposa ama filmes sobre Natal. Principalmente comédias românticas.
Esse livro é isso. Uma ótima comédia romântica de Natal, mas com o melhor final que você vai ver.
Eu prometo!



sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Escolhas

 

Abri os olhos, me sentei, balancei a cabeça, como se quisesse colocar as ideias no lugar.
Demorei um pouco para entender o que tinha acontecido.
Eu não sentia dores.
Estranhamente, eu não sentia dores.
Pedaços da minha moto estavam espalhados pela rodovia.
Pessoas chorosas andavam para cá e para lá...
Uma ambulância chegou. 
Parou bruscamente.
Dela saíram três paramédicos correndo.
Dois foram direto para o carro que estava virado de ponta cabeça, no meio do canteiro central da rodovia.
O outro correu até o acostamento, e começou a procurar.
As pessoas apontavam para a rodovia, para o carro que capotou e para os pedaços da minha moto.
— Estranho... — falou uma moça se dirigindo a mim.
— O que é estranho?
— Eu não sinto dores.
— Você também se envolveu no acidente?
— Sim... — ela murmurou me olhando encabulada. — Você é o cara da moto?
— Sou. — respondi. — Eu também não sinto dores. Também estou achando estranho, mas deve ser a adrenalina.
— Não é a adrenalina, — falou um homem entrando na conversa.
— Como assim? — perguntou a moça.
— Você está vendo aquele saco ali ao lado do seu carro?
— Estou...
— Seu corpo está lá dentro.
— Ela morreu? — eu perguntei arregalando os olhos.
— Morreu, uai! — respondeu o velho colocando a mão no ombro da moça. — E você, — continuou o velho se dirigindo a mim — vê aquele capacete ali no meio da rodovia?
— Sim... Ele deve ter saído quando a gente bateu.
— Não,  — respondeu o velho com um sorriso de canto de boca — o que saiu foi a sua cabeça!
— Caraca, velho! Então eu também morri... Que bosta! E você ainda sorri?
— É que são tantas pessoas que venho buscar, que pra mim, a reação de vocês é sempre engraçada.
— Meu Deus, meu senhor! — falou a moça com cara de choro. — Eu não estou achando graça nenhuma.
— Me desculpe Isabel Cristina. Eu não vou mais sorrir.
— Puxa vida! Eu estava no meu último ano de faculdade. Estudei a vida toda. Tinha arrumado o estágio dos meus sonhos.
— Eu sei minha filha... Mas infelizmente a vida é passageira, e acaba num piscar de olhos.
Eu caminhei até o capacete. Não podia ser verdade o que aquele velho estava dizendo.
Cheguei até ele, me abaixei, tentei pegar, mas minha mão atravessava o capacete, como se eu fosse feito de vento.
Caralho! — pensei — O velho está falando a verdade.
Quando percebi que tinha morrido, as pessoas da cena do acidente, os carros, os paramédicos e as ambulâncias sumiram de repente! 
Um vento forte, que começou com cheiro de enxofre e terminou com perfume de lavanda, bateu em meu rosto.
Nisso, dois carros se aproximaram de mim.
O velho desceu de um deles, e um cara estranho, de terno preto, gravata borboleta, chapéu-coco vermelho e sorriso brilhante, desceu do outro.
— Nós viemos buscar vocês dois. — falou o cara do terno.
— Eu não te ofereço nada, a não ser paz, e uma boa recuperação. — falou o velho.
— E eu, — começou o cara do terno, como se fosse um vendedor de comercial de aplicativo chinês — ao contrário desse aí; ofereço esse mundo todo! Ofereço riquezas, ofereço reinos, dinheiro, poder...
Eu olhei para a moça, que estava ao meu lado, com a cara ainda chorosa, e perguntei:
— E aí? Qual a gente vai encarar?
— Acho melhor a gente ir com o velho.
— Porque você acha isso?
— Porque, pelo menos no meu caso, eu vivi correndo atrás de riquezas, poder, dinheiro, bens materiais, a vida inteira.
— É... eu também.
— Então — cochichou a moça no meu ouvido. — E olha a cara de malandro desse cara de terno.
— Verdade... — decidi. — Vamos com o velho. Quem sabe a gente descançe um pouco.
Dizendo isso, a gente entrou no carro do velho, que sorriu para o cara do chapéu-coco e disse:
— Lú... Seu discurso tem que mudar...
— Vá pro inferno Gabriel!
— Eu não... Lá vocês se vestem muito mal. Esse seu terninho preto já está batido demais.



terça-feira, 26 de agosto de 2025

Simplicidade

 




Para noites frias, recomenda-se um bom cobertor.
Para dias quentes, recomenda-se uma grande sombra.
Para chuva, um guarda-chuva.
Para as tribulações da vida... Fé!
Para grandes problemas, recomenda-se olhá-los de cima para baixo, afinal, somos maiores que eles.
Os monstros só existem para quem acredita neles.
O dia é cansativo para quem não gosta do que faz.
Para dor de cabeça, recomenda-se Doril, afinal, como dizia minha avó:
— Tomou Doril, a dor sumiu.
Mas... dormir bem, sorrir bastante e ter pensamentos positivos, economiza o dinheiro do Doril.
Para fome, recomenda-se comida!
Arroz com feijão é muito bom. Experimente!
Para sede, recomenda-se água!
Para absorver conhecimento, recomenda-se ler um bom livro.
Minha avó não dizia que uma maçã por dia, faz uma criança sadia; mas eu ouvi isso por aí, na época em que minha avó ainda estava por aqui.
Eu digo: Uma porção de leitura por dia, faz uma mente sadia.
Seja a mente da criança, adolescente ou adulto.
Ou seja: No final o que eu recomendo?
Simplicidade, fé e leitura.
Isso já é 70% de caminho andado...


sábado, 23 de agosto de 2025

E depois... um sorriso sincero.



Essa é a minha participação no coletivo de postagens pelo aniversário de 16 anos do blog da amiga Roselia:





https://www.idade-espiritual.com.br/


Rosélia, minha amiga! Obrigado por me convidar para participar desse evento tão importante que é o aniversário do seu blog. 

Isso só poderia vir de alguém muito bacana e carinhosa com os amigos e a gente sabe que você é assim. 
Uma pessoa sem máscaras.
Eu fiquei muito feliz! Obrigado!





Carmen era o estereótipo de "mulher fatal."
Dessas que, quando desfilam pelas ruas — sim ela não apenas andava, ela desfilava — param o trânsito.
Linda, inteligente, bem sucedida, empreendedora, descolada... Ela era o exemplo de mulher a se seguir.
Suas redes sociais bombavam.
Se ela postasse a foto de um café da manhã, pelo menos três mil visualizações e mais de 500 comentários era o mínimo que se esperava.
Ela era uma deusa e sabia disso.
O pior, ela assumiu esse status de deusa e acreditou nele. Sabia do fascínio que causava. Sabia que a personagem — mulher perfeita — assombrava a mente de quem a conhecesse.
Se fosse homem, certamente cairia apaixonado e se fosse mulher, a inveja ou a adoração brotaria em seu coração.
Ela, acostumada com a fama, não ligava, quando muitas pessoas a acusavam invejosamente de ser a mascarada! De viver um mundo de redes sociais, onde nada é o que parece ser.
"Minha máscara é ser sexy e inteligente." — ela pensava consigo mesma.
Um dia Carmen foi escolhida a patrona do jantar beneficente da Associação dos Amigos dos Animais dos Jardins, um bairro muito glamoroso de São Paulo.
Nesse jantar, empresários, influencers e personagens da alta sociedade paulistana, marcariam presença; para usar a máscara de amigo dos animais, o que os ajudaria em suas reputações.
As nove horas em ponto, Carmen estacionou sua Lamborguini na porta do evento. Um manobrista se aproximou e abriu a porta para ela descer.
Carmen olhou para o rapaz e sentiu o cheiro do suor daquele homem. Um calafrio percorreu desde a base de seu pescoço até o cóccix. 
Os feromônios exalados pelo rapaz, causaram um curto circuito dentro dela. 
— Olá Carmen. — disse o rapaz, de uma forma quase abusada, sem pompa e sem a atenção que uma mulher daquele calibre necessitava.
— O... O... Olá... — respondeu ela tentando entender o que estava acontecendo.
— Eu posso estacionar seu carro.
— S... sim, po... pode! — murmurou Carmen, entregando a chave para o rapaz.
"Meu Deus!" — pensou ela se dirigindo até o salão. — "O que foi isso que aconteceu comigo?"
Naquele instante Carmen se sentiu desmascarada! Nua de sua máscara de mulher fatal. Uma mulher desprotegida, diante de uma situação onde ela não tinha as rédeas.
Durante a festa, Carmen olhava para seus convidados e percebia que nada era real!
Pessoas que sorriam umas para as outras pela frente, e que pelas costas faziam cara feia.
Pessoas que pegavam nos talheres como príncipes e que se comportavam como robôs, querendo demonstrar mais educação do que tinham na verdade.
Pessoas gentis umas com as outras do mesmo nível, mas que nem olhavam para a cara dos garçons.
Carmen se sentiu péssima.
Péssima por ter caído na real.
Um instante em que um homem não fez nada de mais para tentar nada de mais com ela, foi um divisor de águas em sua mente!
Meia-noite, Carmen subiu ao palco onde o DJ tocava suas músicas e pegando o microfone, deu inicio ao seu discurso, antes do leilão que viria a seguir.
— Olá amigos,  — começou cabisbaixa — aqui estamos nós... Vestindo nossas máscaras de boa gente! Boa gente, no meio de pessoas importantes.
— O que ela está dizendo? — perguntou um.
— Ela bebeu? — murmurou outro.
— Eu mesma, — continuou olhando para o salão e encarando pessoas nas mesas — nem gosto de gato ou cachorro. Na verdade, só fui escolhida para ser patrona desse jantar, porque postei uma foto no Instagram, onde um gato atrevido, aparece deitado em uma mesa ao meu lado. Mas eu nem sei que gato é aquele.
— Meu Deus... — cochichou uma mulher, colocando a mão na frente da boca, enquando se encostava no ouvido da amiga ao lado. — A Carmen enlouqueceu?
— Tem muita gente aqui, que assim como eu, nem tem animal de estimação. Mas a gente sabe que posar de protetor dos animais, ajuda a sair bem na foto.
— Que droga! A Carmen está estragando o evento todo. — praguejou um dos representantes da Associação dos Amigos dos Animais.
— Mas nós temos nossas máscaras! — continuou a mulher fatal, agora vestindo sua fantasia. — E pelas nossas máscaras, pela manutenção do personagem que nós criamos... Vamos participar desse leilão e ajudar da forma como nunca ajudamos antes. Os animaizinhos merecem.
A gargalhada ecoou pelo salão! As pessoas fingiram que entenderam e disseram que a Carmen tinha feito uma jogada de mestre.
Foi a maior arrecadação de um jantar beneficente da história de São Paulo.
Terminado o jantar, no saguão do salão,  todos cumprimentaram a anfitriã e declararam que foi um sucesso.
Carmen, agora ciente que naquele momento era um personagem, sorriu para todos e agradeceu a participação no evento.
No final, ela se despediu do presidente da Associação e saiu tentando se concentrar em não desmoronar novamente diante da presença do manobrista.
Quando chegou na rua, ela se assustou ao ver a sua Lamborguini estacionada do outro lado da avenida. Então, um menino se aproximou dela e disse:
— A senhora é a Carmen.
— Sou. — respondeu ela assustada.
— Um moço me pediu para te entregar essa chave do seu carro e esse bilhete.
Carmen pegou a chave, e encabulada, atravessou a rua e entrou em seu carro. Antes de sair, ela leu o bilhete:
"Carmen, me desculpe me passar por manobrista. Mas eu apostei com meus amigos que iria dar uma volta no seu carro hoje. Não fique brava."
" Filhodaputa!" — pensou Carmen dando um sorriso. — "É por isso que ele estava suado e cheirando a macho! Ele estava estressado pelo momento."
Ainda sorrindo, ela abriu seu celular, entrou em seu Instagram e pensando por um momento, titubeou, mas, deletou sua conta.
"Pra mim chega de viver de aparências." — pensou ainda com sorriso nos lábios.


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Chatos e rebeldes


Tem uma música da banda Garotos da Rua chamada, "Eu toco Rock". Na letra, o cantor Bebeco Garcia grita cantando — ou canta gritando:
Eu toco Rock!
Eu não do bola pro resto,
pode dizer que eu não presto.
Não tenho nada com isso,
pode dizer que eu sou lixo.
Tá no fim...
... não tem futuro pra mim.
Me trata como bandido.
Me chama de caso perdido!
Prejuizo garantido...


Como é a vida né?


Uma vez na faculdade um professor leu um texto que dizia mais ou menos assim:
Essa juventude não tem vergonha!
É um bando de preguiçoso.
Não respeitam os pais!
Se vestem mal.
São chatos e mal educados.

Um texto normal para nossos dias. Afinal, a gente sempre reclama da juventude. Comparamos com nossa geração e dizemos que os jovens são um bando de frouxos. 

Nutellas! — bradamos do alto de nosso julgamento, como está na moda dizer.
Mas o problema, é que o texto acima, foi extraído de um papiro egípsio anterior a Cristo.
Olha só!

Meu pai era músico. Acordionista. Tocava pra caramba! Tipo fenômeno mesmo.
Tocou com vários cantores, e na época que morava em fazendas, ele era o showman. 
Carregava um baile de 4 horas, sózinho nas costas.
Naquele tempo os sanfoneiros — meu pai dizia acordionista e não sanfoneiro — faziam os bailes sózinhos ou acompanhados de um violão.
Ele tocava músicas "clássicas" para aquele público: valsas, boleros, músicas românticas, chorinhos e conções sertanejas raiz.
Uma vez ele me viu assistindo a um programa que passava na TV Cultura, chamado: Boca Livre.
Esse programa trazia bandas de garagem, punk e pós punk, que se enfrentavam em um festival que durava o ano todo.
Ele achou que eu estava usando drogas!
Falou que aquilo não era "música de gente!"
Ficou puto de raiva!
Ele tinha um sonho de me ver tocando acordeon... Até fiz aulas um bom tempo e até aprendi a tocar algumas músicas.
Mas não deu em nada!
Eu ouço rock e ouço blues.
Setenta por cento de meu tempo músical é escutando esses ritmos.
Na época eu fiquei revoltadinho com a negação do meu pai.

Com o tempo ele acabou aceitando um pouquinho o meu gosto musical.
O gosto dele — eu amava! E ele sabia disso...
Amava ver ele tocando. Realmente era um mestre.
Herdei dele o gosto por música clássica também. 
Chorinho é lindo demais e emociona. 
Banda e orquestra sinfônica também emocionam.
Adoro aquelas bandas de Charleston americamas, com banjo, violão, washboard e metais.

Hoje, eu tento não implicar com meu filho de 13 anos.
As vezes não consigo.
Acho essa geração parada demais.
Temos que falar mil vezes a mesma coisa.
Eles não tomam iniciativa... Mas e nós?
Nós éramos melhores?
Acho que no final, o que vai valer, é a desenvoltura quando as verdadeiras obrigações da vida chegarem.
Agora ele é criança e eu sou chato. Um chato cuidadoso e presente — mas sou chato.

O Bebeco Garcia morreu no começo dos anos 2000.
Nos seus últimos shows ele era considerado um dos melhores guitarristas do Brasil e o melhor no estilo slide.
Ele conseguiu superar seus monstros e os seus próprios julgamentos.
Ele ainda toca rock, mesmo depois de morto. 
Toca na minha vitrola.
Meu filho vai ter a vitrola dele.
E assim a vida vai tendo seu ciclo...
Viver é bom demais — sejamos nós os chatos ou os rebeldes do momento — viver é bom demais.






quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Seu Lourenço


Em dez minutos, eu conheci seu Lourenço.
Do nada, após um sorriso simpático, o velhinho de oitenta e cinco anos, me disse que foi criado na roça — sem pai — e quase sem mãe.
Aos seis anos já trabalhava “panhando” algodão. Aos dez, já fumava, e fumou até os vinte e cinco anos! 
Um dia, se levantou da cama e disse pra si mesmo: — À partir de hoje não fumo mais!
Não fumou mesmo, e também, nunca mais tomou café. 
Olha só! 
Ele disse que só o cheiro do café, até hoje — me "volta" na cabeça o gostinho do cigarro.
Seu Lourenço se mudou pra Barretos e começou a trabalhar como pintor de casas. 
Pintou mais de quarenta casas pela cidade, até que um dia, quando foi comprar pinceis em uma loja, conheceu o gerente de uma fábrica de tintas, chamada “Tintas Universo”. 
Seu Lourenço conversou muito com esse cidadão, e até saiu para almoçar junto.
Um belo dia o velhinho leu na Folha de São Paulo, que a Tintas Universo estava procurando um representante de vendas. Com coragem, ele, com pouquíssima escolaridade, trabalhador braçal, sem nunca ter ido a uma cidade grande, saiu de Barretos e foi parar na porta da fábrica de tintas.
Depois de uma tarde inteira de conversas, ele acabou sendo contratado não como vendedor, mas sim, para abrir mercados demonstrando o produto Brasil afora. 
— Quando eu vi que ele não ia me contratá como vendedor, porque ele disse com muita gentileza que eu não tinha estudado, eu falei pra ele que então eu podia demostrá a tinta nas cidades onde eles não tinha cliente.
A fábrica não tinha esse cargo e Seu Lourenço foi um dos primeiros demonstradores de tintas, diretamente de uma fábrica, do Brasil.
Ele me disse que conhece todos os estados do Brasil, conhece tanta cidade que nem sabe a quantidade. 
Trabalhou vinte anos na Tintas Universo e quando ela foi vendida para a Luksnova ele continuou na empresa e dela pulou para a Tintas Ypiranga que era do mesmo grupo, por mais de dez anos. 
Como complemento, acabou também sendo vendedor da massa plástica Iberê.
— O dono da Universo achou que eu não dava certo como vendedor, mas uma vez, eu vendi em um mês mais de vinte mil latas de massa plástica! Mas não posso reclamar. A Universo foi muito boa na minha vida.
— Um dia, comprei um Fusca! — ele falou levantando o dedo indicador e se ajeitando na cadeira. — Mas uns bandidos tentaram me roubar, me cercando na rodovia. Eles estavam agressivos e colocaram um revólver na minha cabeça. 
Eu respirei fundo e calmamente falei para um dos bandidos:
— Pode levar meu carro! Eu comprei ele sem precisar. Quando eu nasci eu não nasci com carro. Nasci antes do primeiro carro chegar no Brasil, então, eu não preciso dele pra nada.
Os assaltantes foram embora sem roubar o Fusca, e na primeira cidade que seu Lourenço chegou, logo deu um jeito de vender o carro e nunca mais dirigiu!
Seu Lourenço voltou pra Barretos depois de se aposentar e hoje mora em uma casa muito boa, num bairro chique da cidade. 
Suas duas filhas moram com ele. Cada uma delas é formada em mais de uma faculdade, e graças a Deus — ele tirou o chapéu quando disse graças a Deus — hoje ele até parece um velhinho, negro, humilde e com cara de pobre, mas a história de vida que tem, é pra poucos!
Em dez minutos conheci seu Lourenço! 
Tem gente que acha que perde dez minutos do dia, conversando com gente assim. 
Eu ganhei! 
Ganhei a oportunidade de conhecer alguém tão legal!
Ah! Seu Lourenço, antes de ir embora, olhou bem dentro dos meus olhos, apertou a minha mão, e sorrindo me deu dois conselhos:
— Menino, não compre nada que não precisar, não compre porque é bonito, ou porque está na moda, só compre quando tiver dinheiro pra comprar. Se não tiver dinheiro, não compre. 
Com o sorriso ainda estampado no rosto, tornou a olhar nos meus olhos e disse o segundo: 
— Quando ficar velho, e estiver perto de parar de trabalhar, seja viciado em palavras cruzadas! Elas não deixam o nosso cérebro enferrujar.
Dizendo isso, virou-se e foi embora. Talvez nunca mais eu tenha o prazer de ver seu Lourenço, mas com certeza, ele sempre vai estar presente. Algum dia, em algum pensamento, em alguma atitude minha ou simplesmente — fazendo palavras cruzadas.






sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Descivilização



 

Poetas que não fazem poemas.
Músicos que não tocam.
Atores que não atuam.
Escritores que não escrevem.
Humoristas que não fazem rir.
Desenhistas que não desenham.
Pintores que não pintam.
Cantores que não cantam.
Escultores que não esculpem.
Artesãos que não fazem artesanato.
Bandas que não gravam discos.
Orquestras que não se apresentam.
Circos que não têm público.
Respeitável público!!!!!

...

Onde está o respeitável publico?

Arte engolida pela obrigação de ganhar o leite das crianças.
Onde está a criatividade?
Onde está o valor da cultura?

Cultura substituída pela emoção dos likes fáceis.
Os likes são automáticos — e não nascem da sensibilidade.

A sensibilidade deveria ser estimulada pela cultura.
A civilização está perdendo a sensibilidade?
A cultura está perdendo a civilização?

Respeitável público!!!!

...

Onde está o respeitável público?

Insensível?
Ou percebeu a baixa qualidade?
Deixe seu like e o seu comentário.
Se quiser, nem precisa ler...  


 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Raízes da culinária brasileira, principalmente da Paulistânia - Final

 


Pinga e frita




Era o primeiro dia de Carlos no Eiffel. 
Ele tinha trabalhado em restaurantes menores, que serviam bons pratos, mas nada tão elaborado como neste.
O chef Roberto era super exigente. Desde que voltou ao Brasil e montou o Eiffel, que servia pratos da alta gastronomia, com inspiração na cozinha francesa, ele se tornou um dos astros da gastronomia paulistana.
O Eiffel, em pouco tempo ganhou duas estrelas Michelin, e a fila para reservar uma mesa, chegava a três meses.
— Carlos! — despejou Roberto com olhar sério. — Um pato com redução de vinho na mesa nove.
— Sim chef! — respondeu Carlos, ainda tímido, mas querendo demonstrar atitude.
Na cozinha, os cozinheiros e chefs, sem conversar, cortavam, deglaceavam, fritavam, assavam, arrumavam no prato e mandavam suas joias para os garçons.
Roberto, andando pelo salão, sorriu, ao ver que o clima era de alegria.
Os clientes comiam, bebiam, conversavam e davam boas risadas, fazendo a aura do lugar brilhar.
Ao passar pela mesa do doutor Marques, ele reparou que o pato, que havia mandado Carlos fazer, não estava no padrão dos pratos do restaurante.
Furioso, ele entrou pela cozinha, indo direto ao cozinheiro, que agora fazia um risoto de limão-siciliano.
— Eu não mandei você fazer um pato para a mesa nove?
— Sim, senhor, e eu já fiz!
— Não, o senhor não fez.
— Fiz sim — respondeu Carlos enrugando a testa — já até mandei para o garçom.
— O senhor fez outra coisa irreconhecível! Aquilo que o doutor Marques está comendo, não é o pato com redução de vinho aqui da nossa casa! É outra coisa.
— O senhor me desculpe, mas é o pato que eu sempre fiz. E quando vocês me mostraram o prato, achei muito parecido com o meu.
— Parecido? — esbravejou Roberto vermelho de raiva. — Aqui não existe isso! Existem os meus pratos! Minhas criações! E tudo tem que ser perfeito.
— Mas ai eu não tenho culpa! Vocês não me ensinaram o passo a passo dos pratos de vocês.
— Eu achei que estava contratando um cozinheiro profissional quando te contratei.
— Mas eu sou profissional!
— Não! Não é...
Nesse momento, o maître entra na cozinha anunciando que um dos clientes quer falar com o cozinheiro que fez o pato com redução de vinho.
Roberto se assusta! Ele sabe que o doutor Marques é um cliente muito exigente. Profundo conhecedor da alta gastronomia. E uma pessoa muito influente.
— Doutor Marques... — falou Roberto com um sorriso amarelo, recebendo o cliente na porta da cozinha.
— Roberto, — respondeu Marques com os olhos vermelhos e marejados — quem cozinhou aquele pato?
— Foi o Carlos, um cozinheiro novato. — respondeu o chef, apontando para seu cozinheiro, que olhava a cena com os olhos arregalados.
— Meu filho! — começou o doutor Marques. — O seu pato, me levou diretamente para a casa da minha avó, lá na minha infância, no interior de Minas Gerais.
— Desculpe, dout... 
— Não tem do que se desculpar Roberto! — falou o doutor,  sorindo para o dono do restaurante, e se aproximando do cozinheiro, envolvendo-o num abraço. — Esse foi o melhor pato com redução de vinho que eu comi em toda a minha vida! Ainda hoje eu vou falar para todo mundo, que aqui no Eiffel, finalmente a cozinha brasileira apareceu!
— O... Obrigado, senhor... — respondeu Carlos titubeante.
— Qual técnica você utilizou no preparo desse pato, meu filho?
— Se chama pinga e frita.
— Eu sabia! — bradou Marques sorrindo e chorando ao mesmo tempo. — A técnica das velhas cozinheiras da roça! Aquelas que vieram das senzalas, ou fugidas da guerra na Europa! Maravilhoso!
— Sim, senhor, — falou Carlos com feição de alívio — eu aprendi essa técnica ainda quando era criança, com a minha avó, que morava em um sítio, no interior de São Paulo. Ela aprendeu com a avó dela, que era cozinheira em uma fazenda.
— É uma técnica ancestral, — completou Marques olhando para todos, como se estivesse em um palco — que consiste em ir fritando a proteína, no caso dessa, foi o pato, e ir colocando pequeninas quantidades de água, para soltar aquela delícia que se forma no fundo da frigideira. Não deixa de ser uma deglassagem, que vocês fazem uma única vez, mas que nessa técnica é feita inúmeras vezes, durante o cozimento.
— Isso mesmo! — concordou Carlos sorrindo.
— Meu filho, — falou Marques secando as lágrimas com um lenço de seda — quando eu vi aquela crosta cor de ouro cobrindo todo o pato, eu sabia que estava na frente de um prato feito por um grande cozinheiro! Parabéns.   
Depois que o doutor Marques foi embora, cuidadosamente acompanhado pelo chef Roberto, a cozinha voltou ao normal. 
No final do expediente, Roberto entra novamente pela cozinha e diz, chamando a atenção de todos:
— Todos os cozinheiros e chefs, prestem atenção! Quem de vocês conhece essa técnica de pinga e frita, que o Carlos usou para fazer o pato do doutor Marques?
— Nós escutamos a explicação. — respondeu um dos chefs.
— Mas já fez? Não!? Não fez...?
Os chefs e cozinheiros, treinados e formados na alta gastronomia francesa, ficaram mudos, olhando uns para os outros, com cara de quem não sabiam de nada.
— Então, — continuou Roberto apontando para Carlos — amanhã cedo, vocês vão entrar uma hora antes, e treinar essa técnica. O Carlos vai demonstrar para todos.
— Chef... — falou Carlos levantando a mão, como um aluno da escola primária.
— Fale...
— Eu estava pensando... a gente pode deixar os cogumelos como acompanhamento, como é o prato original do senhor. Mas se a gente cozinhar mandioca e depois saltear na manteiga, e acrescentar ao prato... a sedosidade dela vai contrastar com a acidez da redução de vinho, e o conjunto vai ficar delicioso.
— Escute aqui Carlos — retrucou Roberto com os olhos arregalados — você aqui é pago para cozinhar e fazer e não para pensar!
— Desculpe senhor.
— Se você acha que vai ficar bom, faça! Não fique pensando! Faça essa mandioca, me apresente e se realmente ficar bom, a gente faz desse jeito!
— Tudo bem senhor. — concordou Carlos com um meio sorriso.
— Agora vamos embora! Vamos, vamos, vamos! Até amanhã cedo! Uma hora antes! Sejam pontuais! Entendido?


Amigos! E assim, chegamos ao final dessa série de postagens sobre gastronomia Brasileira, principalmente da Paulistânia. Procurei falar de fatos históricos, dando ênfase na relação pessoal através das épocas e a contribuição dessas pessoas, no que a gente come hoje!
Muitos dizem que o Brasil não tem uma culinária autêntica, mas infelizmente, não sabem o que estão dizendo. 
Talvez, por falta de conhecimento, talvez por preconceito.
Espero ter conseguido mostrar para vocês o que queria e que vocês tenham gostado.
Usei um tom bem humarado, lúdico e as vezes emocionado... Acho que tudo isso tem que vir no pacote. No pacote de nossos ancestrais. No pacote de nossas despensas. No lombo dos burros. No fundo das caravelas... Nas cozinhas do Brasil.