Eu vejo essas pessoas que falam que
se lembram de tudo o que aconteceu com elas desde que eram crianças, desde que
tinham três ou quatro anos, que se lembram “como se fosse hoje”, aí eu penso
que então eu sou meio ruim das ideias.
Eu não me lembro de quase nada! Na verdade,
eu tenho uns flashes de algumas coisas que me aconteceram e que geralmente, não
sei porque, são lembranças de momentos não tão felizes.
O pensamento mais antigo que lembro
é um muito triste, ele é de um homem que vendia biju na rua.
Hoje não se vê mais isso, mas o “bijuzeiro”
era uma pessoa que andava pela rua, com uma coisa barulhenta na mão, que se
chamava matraca. Essa matraca era uma plaquinha de madeira, que tinha uma alça
e uma dobradiça, que o bijuzeiro balançava girando o braço, o que fazia a
dobradiça bater pra cá e pra lá e fazer um barulho, tipo: “plac plac plac plac!
— Olha o bijuuuuuuu!” — eles
gritavam.
E a criançada corria para comprar
isso, que nada mais era, do que uma massa doce, quase igual a massa do sorvete
cascão que a gente compra hoje nas sorveterias.
Eu devia ter uns quatro anos, (sei
disso pela casa em que a gente morava) e ainda não sabia contar o dinheiro. Eu
lembro que fui correndo em casa e peguei uma nota qualquer que estava por ali e
corri pra comprar o biju. O homem disse que o dinheiro não dava. Então eu
voltei correndo e peguei outro dinheiro que encontrei, fui correndo e ele disse
que ainda não dava. Eu falei pra ele esperar e voltei correndo vasculhei a casa
toda e arranjei mais umas notas e moedas, voltei de novo ao bijuzeiro, que
pegou as notas todas amassadas na minha mãozinha de criança e falou para as
outras crianças que estavam em volta dele:
— Olha o dinheiro desse gordinho! Hahahahaha!
Não dá pra nada e até parece dinheiro de bêbado, todo amassado! — e virando-se
pra mim, sorrindo com um sorriso de demônio banguela, disse. — Vai embora
moleque, seu dinheiro não dá pra comprar nada.
Todos os meninos deram risada da
minha cara... Essa é a lembrança mais antiga que eu tenho: um bijuzeiro velho,
banguela e desumano. Na verdade, acho que lhe faltava só os atacantes... Os
laterais ele ainda tinha, naquela boca feia.
Outra lembrança muito antiga, deve
ser do ano seguinte, no Natal, que é o Natal que eu recebi meu primeiro
presente do papai Noel, e olha eu já tinha quatro anos.
Até então, meu pai que trabalhava
muito, mas que também adorava gastar com as maravilhas da noite, não deixava
faltar o básico em casa, que era comida, aluguel, água e luz; mas fora isso,
tudo era luxo! Chocolate eu acho que ganhava uma barrinha a cada três ou quatro
meses. Refrigerante deveria dar pra uma semana e não era toda semana que tinha.
Bolacha recheada, iogurte, salgadinho... Eu nem sabia que essas coisas
existiam. Nesse contexto de humildade e
pobreza, eu pedi numa redação da escola que o papai Noel me desse uma bola
“dente de leite”, que era uma bola que tinha naquele tempo, e que parecia uma
bexigona. Hoje em dia as crianças não querem nem ver uma bola dessas, seria
quase um motivo de bulling, mas pra gente no final dos anos 70 era um brinquedo
sensacional.
Lembro que era de noite e meu pai
foi a cozinha, voltou, e se deitou na cama com minha mãe. Eu dormia numa cama
ao lado, porque nossa casa só tinha um quarto, um banheiro e uma cozinha.
Depois de algum tempo meu pai falou
como se estivesse assustado:
— André, você escutou esse barulho
na cozinha? Vai lá ver o que é?
Eu fui e me lembro da bola ali em
cima da pia! Embrulhada num papel vermelho. Puxa vida! — eu pensei. — O papai
Noel havia leu a minha redação!
Meu Natal não teve nada além da
bola, eu nem sabia o que era panetone, não teve refrigerante, leitoa assada,
churrasco... Imagina se isso era possível. Mas não importava nada disso, porque
eu tinha ganhado uma bola dente de leite! O que mais que eu iria querer na
vida?
Essa, apesar de hoje eu saber que
não era uma situação fácil e que não foi um Natal feliz, mesmo assim, acaba
sendo uma lembrança boa.
Meu primeiro presente de Natal, esse
a gente nunca esquece.
Esses dias eu estava pensando em
como a vida melhorou, apesar de não ter mais meu pai aqui entre nós.
Ele poderia ter sido muito mais
feliz e fazer da gente uma família muito mais feliz também, mas reconheço que
alguns anos antes dele morrer, ele já havia resolvido ser pai de família de
verdade e a situação melhorou muito.
Há algum tempo eu assisti uma
reportagem sobre garotos muito pobres que estavam pedindo ao papai Noel lhes
trazer alguma coisa no Natal. Um carrinho, uma bolinha, uma roupinha, qualquer
coisa.
Os correios têm uma iniciativa muito
bacana, aonde você pode ir até lá, ler alguma das cartinhas endereçadas ao
papai Noel e se resolver, dar o presente para a criança.
Eu sei que só vai o presentinho que
a criança pediu. Não vai churrasco, nem leitoa assada, e talvez essa criança
também nem saiba o que é panetone, mas eu me lembro da felicidade que fiquei
quando o papai Noel me trouxe aquela bola dente de leite e posso falar que
valeu a pena!
Talvez, se a gente, que hoje pode,
resolver ter uma atitude de presentear uma criança dessas, essa atitude possa
ser daqui a 30, 40, 50 anos, uma lembrança boa na cabeça de algum adulto, que
talvez não quebre a corrente, e continue fazendo alguma criança feliz por aí.
O que acha?