sábado, 19 de dezembro de 2015

Corpos e porcos



 Olá amigos! Mais um ano está se acabando, e a gente está por aqui, escrevendo e lendo minhas bobagens e verdades. Eu agradeço a todos vocês que sempre me presentearam com seus comentários, pitacos, dicas e idéias, além de muita amizade e bem querer!
Hoje resolvi postar um conto, que escrevi para uma coletânea de histórias policiais. Espero que vocês se divirtam muito. Talvez essa seja a última postagem desse ano, por isso, reservei este conto, que julgo ser um bom presente de natal, para quem gosta dos meus escritos.
Um grande final de ano a todos. Muita paz, alegria, comunhão, Jesus no coração e prosperidade, é o que desejo a vocês no ano que vem. Que a gente continue junto e misturado; escrevendo e lendo, lendo e escrevendo, e por isso mesmo... Sonhando!
Um beijão a todos e fiquem com Deus! Até 2016! Sentirei saudades.








            O delegado entrou na viatura, se sentou do lado do motorista e fechou a porta, batendo-a com raiva. Depois de esmurrar o volante, ele parou por um instante, respirando profundamente algumas vezes, até se refazer da raiva e adrenalina que o corroíam por dentro naquele momento. Recobrando o controle de seus pensamentos que pareciam vir aos milhões por segundo em sua cabeça, o delegado pegou o radio comunicador da viatura, e apertando o talk, falou:
- Aqui é o delegado Borges, estou na rodovia Assis Chateaubriand, quilometro duzentos e cinquenta e três, entre as cidades de Guapiaçu e Olímpia.
            - Tudo bem delegado? Eu sou o Andrade, agente de telecomunicações.
            - Me manda uma abulân... Ou melhor, uma viatura funerária. Nós encontramos mais um corpo largado na beira da rodovia, no porta malas de um carro abandonado.
            - Mais um? Com esse já são nove corpos...
            - Nove corpos, espalhados desde Orlândia até aqui, e o pior é que a gente não tem nem uma testemunha, nem um suspeito, nem um deslize, nada! A gente ainda não tem nem sequer uma ideia, de quem esteja fazendo isso. – desabafou o delegado transtornado.
            - E as características, doutor, estão iguais aos outros corpos encontrados?
            - Estão, - respondeu Borges apertando os lábios enquanto se lembrava do defunto no porta malas – estrangulamento, feito com algum tipo de fio, ou cabo de aço. Não há sinal algum de luta, e depois de colocar o corpo no porta malas o safado ainda deixa o mesmo bilhete.
- Esse cara está deixando a polícia maluca, delegado. O senhor está na cola dele desde que foi encontrado o primeiro corpo, e até agora nada.
- Até agora nada. E o pior, é que além dos corpos encontrados, ainda tem pelo menos, mais sete pessoas desaparecidas.
            - Isso está assustador, doutor Borges. Mas confio no nosso pessoal, a gente vai encontrar esse cara.
- Eu também confio Andrade, o seu comandante foi muito profissional em perceber que esse caso é muito sério, e destacar alguns soldados para ajudar. A gente sabe que é muito difícil a policia militar e civil trabalharem juntas e ainda em perfeita harmonia como estamos trabalhando, mas estou começando a me desesperar, porque a cada corpo que aparece, ou pessoa que some, a imprensa coloca mais pilha na gente, eles querem vender a imagem de que somos incompetentes, mas a gente está fazendo o melhor que pode.
- Eu sei doutor! – falou o agente de telecomunicações com um tom tranquilizador em sua voz. – Tenta ficar tranquilo, já estou mandando a viatura funerária até aí.
            Faz quinze dias que o primeiro corpo apareceu. Era o corpo de uma mulher de nome Micheli, que viajava da cidade de Orlândia, interior de São Paulo, com destino a Jaboticabal, onde fazia faculdade de veterinária na Unesp. Seu corpo estava no porta malas de seu carro, que estava abandonado na beira da rodovia. Dentro do carro tudo estava intacto, inclusive a bolsa de Micheli, com todos os seus documentos, dinheiro, cartões de crédito e talão de cheques. Em cima do banco do motorista, um bilhete escrito com letra de forma, avisava: Procurem a Micheli no porta malas.
            Desde o dia em que a polícia encontrou o corpo de Micheli, mais oito corpos foram encontrados, todos em carros abandonados, e em todos os carros, o mesmo bilhete macabro. Esse bilhete era a única pista que o delegado Borges tinha pra seguir. Um bilhete escrito de tal maneira, que o tornava impossível passar por um teste de caligrafia, pois a letra de forma, quando bem escrita, se torna uma letra fria e impessoal. A única coisa que mudava de bilhete para bilhete, era o nome do cadáver, e isso estava mexendo com os neurônios do delegado. Até agora nove nomes: Micheli, Carlos, Andressa, Joel, Antônio, Marcos, Carolina, Alfredo e por último, mais um Carlos.  

*****

            Uma velha caminhonete Ford “quase vermelha”, sai de uma estrada de terra, no meio do canavial, e para no cruzamento com a rodovia. Dentro da caminhonete, “seu Nonô”, um velho sitiante, e Fred, seu inseparável vira-latas de mais de cem anos, na cronologia canina.
            - Ô Frédão, - fala o velho fazendo um afago na cabeça de seu cachorro, ao mesmo tempo que dirige – a gente tem que levá essa lavagem pros porco comê lá no sítio, e despois eu te lévo pra casa.
            Fred, responde ao amigo apenas balançando seu rabo e sorrindo com o olhar mais doce e remelento possível.
            Antes de entrar de vez na rodovia, o velho percebe um rapaz andando no acostamento logo à frente. O rapaz carregava uma mochila nas costas, e pelos passos lentos, e cabeça baixa, davam a Nonô, a impressão de cansaço e até um pouco de tristeza.
            - Aôôô meu jovem! – disse encostando a caminhonete ao lado do rapaz, que por sua vez, apenas olhou de rabo de olho para a caminhonete, sem se voltar para o motorista, e continuou caminhando.
            - Uai môço! – insistiu Nonô – Tá tudo bem cô sinhor? Eu tô quereno te dá uma carona uai, pra onde ocê vai?
            O rapaz, um jovem branco, muito branco feito leite, de cabelo preto, com uma grande franja que cobria-lhe os olhos, parou de andar, e virando-se, como se estivesse com torcicolo, meio duro, virando o corpo inteiro, disse ainda sem encarar o velho motorista nos olhos.
            - Tudo bem senhor, eu só estou um pouco cansado, porque venho andando e pegando caronas desde Orlândia.
            Nonô sorriu mostrando duas falhas nos dentes da frente, e antes de abrir a porta da caminhonete, examinou a figura à sua frente.
            Fred, levantou as orelhas quando percebeu que seu parceiro Nonô conversava com alguém, e dando meia volta no banco da caminhonete, colocou seu focinho pela janela, também examinando o rapaz, de calça, bota e camisa preta. Um rosnado, poderia ter avisado a Nonô que o cachorro não simpatizara muito com o jovem, mas o velho dando um tapinha amigável em seu amigo canino, disse:
            - Ah Frédão! Larga de sê bobo. Não vê que é só um rapaiz, quase um garoto? Vamos dar uma carona pra ele, porque o menino tá cum cara de cansado.
O velho Nonô abriu a porta da caminhonete, e afastou Fred para que o rapaz pudesse subir. O rapaz, por sua vez, olhou para os dois com o olhar gélido e sorriu, um sorriso amargo, que fez o velho sentir um calafrio na espinha.

*****

O delegado Borges examinava o bilhete desacreditado. “Procurem o Carlos no porta malas.” – repetia ele em sua mente, como se fosse um mantra.
Em toda sua vida, Borges, que agora é delegado em uma região pacata do Estado de São Paulo, mas que em outros tempos, chegou a ser delegado na capital, combatendo criminosos terríveis, nunca havia ficado tão desorientado, como nesse caso. Pois sempre, em todas as suas investigações, o criminoso sempre deixava uma prova que o incriminasse, ou demonstrava um motivo pelo qual estava cometendo atrocidades; mas dessa vez não, apenas esse bilhete, que na verdade não ajudava em nada, e a forma com que todas as pessoas foram mortas, com a garganta quase cortada, eram as únicas pistas que o delegado tinha.
O carro funerário encostou ao lado da viatura e do carro da vítima, e dois agentes da perícia criminal desceram, encaminhando-se até o delegado.
- Doutor, tudo bem?
- Bem, bem, não está né? Esse filho de uma puta está matando gente pela estrada toda e evaporando.
O perito, percebendo a irritação do delegado, apenas balançou a cabeça como se concordasse, e dirigiu-se até o porta malas do carro da vítima. Ao abrir, deparou-se com um homem, de mais ou menos quarenta anos, calvo, que aparentava boa forma, mas que jazia, com os olhos arregalados, expressão de dor, e a garganta marcada por algum tipo de fio.
- Quem era este doutor?
- Os documentos estão em nome de Carlos Augusto de Almeida. – falou o delegado olhando a carteira do defunto. – Aqui tem uma identificação de um hospital de Barretos. Parece que o cargo dele era enfermeiro.
- Já contatou a família?
- Já, falei pessoalmente para eles, que o corpo estaria liberado no IML de Barretos para eles identificarem, daqui a umas três ou quatro horas. Não é bom que os familiares vejam o corpo nessas condições. Mas eu também já avisei, que enquanto o matador não for preso, infelizmente a gente vai ter que segurar o corpo, porque ele é uma prova, do modo que o vagabundo usa para matar.

*****

Depois que o rapaz entrou na caminhonete, mesmo contra a vontade de Fred, um instante de quietude e mal estar pairou no ar, até que Nonô resolveu puxar conversa:
- Meu nome é Antonio, mas pode me chamar de Nonô. Qual que é seu nome?
- Iago. – respondeu o rapaz seco.
- Ocê é meio novinho pra andá assim em beira de rodovia, não é não?
- Não, - respondeu o rapaz sem encarar o velho – o senhor tem um cigarro?
- Eu não fumo, - respondeu o velho – fumar faz mal pros pulmão.
Iago respondeu apenas olhando para o motorista com cara de reprova, como se dissesse: E daí? O pulmão é meu ou seu?
- Por que qui ocê tá andando por aí?
- Eu tenho meus motivos.
- Óia! – disse o velhinho sorrindo – Eu sei que as pessoa tem motivos na vida. Eu mesmo, um dia, resorvi largá minha mulher, despois que meus filho tava tudo criado, e fui morá sozinho no sítio. Mais você ainda é um rapazinho, uai!
- Senhor, eu não estou a fim de conversar sobre essas coisas. Se minha figura, um rapaz novo, andando pela estrada, te incomoda, pode parar a caminhonete que eu desço.
- Não precisa apelá também né? – falou o velho sorrindo. – Eu só to puxano conversa. Afinal a gente vai viajá um pouco junto, e não tem pobrema se a gente se conhecê e trocar umas ideias. Ocê não acha?
Iago respirou fundo, olhando para a frente, como se a rodovia fosse a visão mais entediante do mundo, depois olhou para Fred que estava deitado aos seus pés, no chão da caminhonete encarando-o, e falou:
- O senhor tem vontade de ficar famoso?
- Como? Não entendi.
- Ficar famoso, ter o nome nos jornais, na TV, aparecer na mídia.
- Uai... O que isso tem a vê com o que a gente tava conversano?
- O senhor não falou pra gente trocar ideias? Então, eu quero saber se o senhor tem vontade de ficar famoso.
- Eu não, - respondeu o velho Nonô encolhendo os ombros e franzindo o cenho – nem quando eu era novo eu tinha esse tipo de vontade, imagina agora que tô velho. Por quê? Você tem vontade de ficar famoso?
- Eu tenho, por isso estou fugindo.
            - Ah... Ocê tá fugino de casa, e isso vai te deixá famoso?
            - Não estou fugindo de casa, eu estou fugindo da vida.
            - Da vida? – falou Nonô olhando para Fred que acompanhava a tudo atentamente. – Mais como que a gente foge da vida meu fí?
            - Sumindo, se matando, ou simplesmente se transformando em outra pessoa.
            Nonô encarou Fred, que respondeu com os olhinhos embaçados de um senhor canino, e depois de uma breve pausa, continuou:
            - É um desperdício, um jovem igual a você pensar assim. Você tem uma vida intera pela frente. Essa vida pode sê longa igual a do Fred aqui, ou pode acabar na próxima curva... Mas ocê tem que ter amor pela vida!
            - O senhor é padre, ou pastor? – perguntou Iago usando de um pouco de ironia.
            - Eu sou vivido! Ôcê pode ter certeza que daqui a uns anos, ocê vai ver que isso que eu to falano tá certo.
            - Seu Antonio, o senhor não sabe de nada da minha vida, - respondeu o rapaz com cara de enfado – se eu soubesse que o senhor era algum tipo de velho psicólogo, eu juro que não teria aceitado a carona.  
           
*****

            - Olha aqui, - falou o delegado Borges, mostrando um mapa rodoviário a um de seus investigadores – nós vamos ter que montar uma operação de guerra nessas rodovias. Eu quero um comando a cada dez quilômetros pelo menos, em cada uma dessas rodovias, e nos dois sentidos.
            - A cada dez quilômetros? Em três rodovias e nos dois sentidos? Como isso delegado? O comandante da policia militar não vai liberar uma coisa dessas.
            - Vai sim, ele me deu a palavra de que vai ajudar até a gente encontrar esse filho da puta, e eu não vejo outra forma a não ser com esses comandos.
            - Doutor... Mas nós vamos procurar por quem? Vamos procurar o quê? A gente não sabe quem é o suspeito... Na verdade, a gente nem tem um suspeito.
            - Temos sim, - falou o delegado – o suspeito é alguém pedindo carona. Eu analisei todas as nove pessoas que achamos mortas e todas as sete que estão desaparecidas e nenhuma delas tem ligação com a outra. São de cidades diferentes, idades diferentes e então só podem ter sido escolhidas a esmo. E como todas foram mortas na beira da rodovia e todas eram as donas dos automóveis abandonados... Só podem ter sido mortas por algum caronista.
            - É... – disse o investigador pensativo. – Nisso o senhor tem razão. Só pode mesmo ser alguém pedindo carona. Eu também não vejo outra explicação. Mas um comando a cada dez quilômetros em três rodovias e ainda as vicinais... Isso não dá!
            O delegado Borges franziu o cenho, respirou fundo, pensou um pouco e irritado, falou:
            - Olha, eu não estou pedindo a sua opinião! Eu estou dando uma ordem, dizendo o que eu quero que você faça. Entre em contato com todas as cidades da região, converse com os comandantes de todas elas, eles sabem que a regional está ajudando. Se alguém não quiser colaborar e não entender a gravidade da situação, você passa o telefone pra mim, que eu converso pessoalmente.

*****

            Na caminhonete o velho Nonô ainda tentava fazer amizade com o jovem de cara feia a seu lado.
            - Pra onde c’ocê vai?
            - Fugir, já falei.
            - Óia Fréd, - falou o velho olhando para seu cachorro – ele vai fugir... Será que vai pra Lua?
            - Não, - respondeu Iago esboçando um primeiro sorriso – eu vou pra longe, se possível bem longe mesmo.
            - Bão, uai! Mas esse longe, bem longe, é longe de onde? Daqui, do Ceará, de Pindamonhangaba?
            - Sabe que pra um velho psicólogo, o senhor é até engraçado, e nos últimos dias foi o único que me tirou um sorriso?
            - Bem qui eu pudia sê psicólogo mesmo, as pessoa quando conversa comigo, principalmente esses pobremático de beira de estrada igual ocê, sempre tem suas mazelas resorvida.
            Iago olhou para Fred, que agora parecia um pouco mais simpatizado com ele, pois balançou o rabo quando notou que o rapaz lhe encarava.
            - Esse cachorro é muito velho?
            - Ocê não percebeu que aqui tudo é velho meu fí? Eu sou velho, a caminhonete é velha, o cachorro é velho... Que carona essa que ocê pegou hein!? – respondeu Nonô sorrindo. – O Fred tem quinze anos mais ou menos. Isso pra ele qui é um cachorro grande, tipo fila, misturado com arguma outra raça grande, acaba sendo muitos anos nas costas, coitado. Mas ele tem uma saúde de ferro... Só tá meio dorminhoco.
            - Os cachorros são amigos de verdade, - falou Iago olhando estaticamente para o nada.
            - São mesmo. Mas vortando ao assunto, qui ocê num respondeu: Pra onde é qui ocê tá indo?
            - Eu estou indo, sem rumo, por aí. Enquanto as pessoas forem me dando carona, eu vou realizando a minha missão, até quando conseguir ficar perambulando, sem que ninguém me encontre. Eles querem me encontrar... Mas vou continuar minha missão.
            O velho Nonô não entendeu nada dessa última frase do garoto, imaginou que ele estivesse viajando em algum tipo de droga, mas resolveu continuar a conversa e ver se descobria algo sobre seu passageiro.
            - Ixi... – falou arregalando os olhos e franzindo as sobrancelhas brancas. – Quem são eles?  
            Iago olhou para o velho Nonô, da mesma forma estática de minutos antes, sem piscar, sem mover um músculo. Por alguns segundos que pareceram eternos, o velho conseguiu fitar aqueles olhos frios, mas logo, resolveu mudar o rumo da conversa, pois aquele jovem dava medo, e a última coisa que Nonô queria, era bater de frente com alguém tão sombrio.
            - Tudo bem, - falou sorrindo com seus poucos dentes – se ocê não quiser falar, não fala, e nem precisa fazer essa cara com esses zóio parado parecendo peixe morto, que isso aí me dá medo!   

*****

            - Doutor Borges, - interpelou o investigador – já armamos três comandos: um no perímetro de Barretos e Olímpia, outro entre Colina e Bebedouro e outro em frente Pitangueiras. Assim que os efetivos forem chegando, a gente vai montando mais comandos, e vai fazendo o pente fino em carro por carro.
            O delegado Borges esboçou um sorriso de canto de boca, ele estava certo de que essa seria a tática correta para encontrar o assassino em série que estava degolando as pessoas e colocando-as no porta malas de seus carros, abandonados na rodovia. Ele queria colocar as mãos nesse bandido o mais rápido possível, e interroga-lo não apenas pelos corpos encontrados, mas também pelos sete desaparecidos até agora.
            - Muito bom, - respondeu sentado no capô da viatura, que estava parada no acostamento da rodovia, ao lado do carro onde foi encontrada a última vítima – nós temos que ficar atentos a todo e qualquer caronista que estiver em qualquer carro, Seja homem, seja mulher, seja velho, seja jovem... Pra mim não faz diferença e todos são suspeitos.

*****

            Seu Nonô chegou a uma curva fechada onde não se via a rodovia, e quando a caminhonete surgiu mais uma vez no horizonte da pista, eles deram de cara com um comando, a menos de cem metros de onde estavam.
            O velho notou que Iago se assustou com o comando e olhou para ele com uma cara que dizia: E agora?
            O rapaz retirou um objeto de dentro de sua bolsa e colocou atrás do encosto do banco da caminhonete.
            - Que qué isso aí? – perguntou o velho franzindo o cenho.
            - É um garrote.
            - E o que é um garrote?
            - São dois toquinhos de madeira, ligados a um fio de aço fino, que é usado para estrangular pessoas.
            À frente da caminhonete, uma fila com alguns carros esperando para serem abordados pelos policiais, fez com que seu Nonô parasse a caminhonete, dando tempo para ele se virar para Iago e com cara de poucos amigos perguntar:
            - Como assim estrangular pessoas? Que pessoas ocê anda estrangulano?
            - Calma, - falou o rapaz encolhendo os ombros e espalmando as mãos como se estivesse se defendendo – isso é só uma arma que eu tenho para me defender, porque eu ando por aí pelas rodovias, pegando carona, e a gente nunca sabe quem a gente vai encontrar pela frente.
            - E porque ocê escondeu isso?
            - Porque, queira ou não, o garrote é uma arma, e a polícia, se revistar a minha bolsa pode achar estranho. E o senhor sabe que de cabeça de policial pode sair qualquer coisa...
            A reação de Iago, com medo da polícia, o jeito agora, carismático que ele estava falando, a postura e cara de preocupação dele, deixaram uma pulga atrás da orelha em Nonô, que cada vez mais chegava perto do comando a sua frente.

*****

            - Vamos comer algo ali, - falou o delegado Borges ao investigador que o acompanhava, apontando para um restaurante em um posto de gasolina a poucos metros de onde estavam.
            - Vamos doutor. Quer ir de viatura ou a pé?
            - A pé não, - falou o delegado abrindo a porta da viatura – a gente nunca sabe quando o rádio vai chamar ou alguma coisa que nos faça sair correndo, vai acontecer.
            O delegado Borges era um tipo de policial que sempre usava a inteligência para resolver seus casos. Mesmo nos tempos de São Paulo, ele nadava contra a corrente de seus amigos de profissão, que escondidos atrás do escudo invisível da impunidade, sempre utilizavam de truculência e atitudes politicamente incorretas. Ele não. Sempre tentava investigar as fontes, ouvir testemunhas, olhar os fatos por vários ângulos e assim, depois de tudo esmiuçado, tomar as suas atitudes, que em quase cem por cento das vezes, eram corretas.
            Talvez fosse essa atitude do delegado Borges, que acabou lhe rendendo mais desafetos do que amigos, dentro da própria instituição em que trabalhava. Outros delegados, policiais e investigadores, viam na forma de Borges trabalhar, uma afronta a eles, que tinham outros modus operandi. Inclusive, o fato de Borges, de vez em quando falar que em mais de quinze anos de polícia nunca tivera que dar um tiro em ninguém, era um absurdo aos ouvidos de seus parceiros, que ao invés de ter aquelas palavras como ensinamento, as tinham como insulto.
            A alguns dias que o delegado trabalhava quase que dia e noite, tentando encontrar o “estrangulador das rodovias” que era o nome que a imprensa tinha dado ao matador, devido à forma que ele usava para matar as pessoas. Por isso, nesses dias exaustos ele estava vivendo apenas de café, cigarro e alguns salgados. Ele nem se lembrava mais, o que tinha no prato de sua última refeição, e na verdade, nem se lembrava também, qual foi o último dia em que se sentou em paz, para fazer uma refeição de verdade.
            - Vamos almoçar tranquilos, e depois voltar lá para o comando. - falou colocando arroz em seu prato, olhando para o lado, já escolhendo inconscientemente entre o feijão preto gordo, e o feijão normal. - Eu estou com um pressentimento bom de que hoje a gente vai encontrar esse safado!

*****

            - Ocê tá nervoso garoto?
            - Não, seu Antônio, porque estaria?
            - Sei não, - falou o velho pausadamente, enquanto coçava o parco cavanhaque – eu tô achano que ocê deu uma tremida quando viu o comando.
            Iago, por mais que tentasse esconder, não conseguia enganar e transparecer tranquilidade para o experiente Nonô. Ele estava com o rosto enrubescido e com os olhos arregalados, encarando o comando a sua frente enquanto conversava. Sua postura, também, denotava estresse, pois se ajeitava no banco repetidas vezes, sem conseguir encontrar uma forma de se sentir confortável.
            - Pode ficar tranquilo seu Antônio, é que o fato de eu ter fugido de casa me dá medo quando eu vejo a polícia. Meu pai tem dinheiro e pode estar me procurando.
            O velho balançou a cabeça como se tivesse entendido e engolido a história de Iago, que por sua vez, se ajeitou mais algumas vezes no banco da caminhonete, sem tirar os olhos do policial que se aproximava da janela do motorista, com arma em punho.
            - Bom dia senhor! – falou o policial pedindo para que Nonô abaixasse o vidro.
            - Bom dia! – respondeu o velho mostrando num sorriso, as várias falhas nos dentes.
            Fred, curioso demais, pulou para o colo de Nonô, e colocou sua cabeça grande para fora da caminhonete, assustando um pouco o policial, que deu um passo atrás, mas logo reconheceu que o cachorro era manso.
            - Pode ficá  tranquilo seu guarda, o Frédão é um menino bonzinho.
            O policial, guardou a pistola no coldre, porque à uma primeira e rápida análise, avaliou que as pessoas naquela caminhonete deveriam ser pessoas de bem, e passando a mão na cabeça de Fred, que chegou a fechar os olhos com o afago do policial, abaixou-se e se dirigiu para Iago:
            - Bom dia moço!
            - B... Bom dia seu guarda!
            - O senhor pode me passar os documentos da caminhonete? – falou o policial agora voltando-se para Nonô.
            - Uai, é lógico que posso! – respondeu o velho afastando Fred, que voltou a deitar no assoalho da caminhonete, abrindo o porta luvas para pegar os documentos e entregando-os para o policial.
            - Esse rapaz é seu parente? – disse o policial olhando para os documentos, sem examinar, apenas fazendo cena para investigar melhor a dupla dentro da caminhonete.
            - É meu neto.
            - Seu neto? Puxa, ele é muito diferente do senhor... O senhor é vermelhão com a pele morena, cabelo castanho e esse menino é branco, branco, branco!
            - Minha mulher encheu o saco do meu filho quando ele começou a namorar a mãe desse menino. Ela não acreditava que ele tinha arrumado uma namorada quase arbina, - falou o velho sorrindo – ela falava: - Marquinho, essa branquela vai ficá velha logo! Você não sabe disso? Que esse povo branco envelhece cedo demais?
            O policial sorriu para o simpático velhinho e devolvendo o documento para as mãos de Nonô, advertiu:
            - O senhor sabe porque é esse comando que estamos fazendo?
            - Sei não senhor!
            - Nós estamos procurando uma pessoa que tem matado pessoas estranguladas na rodovia. Ele deve ser alguém pegando carona na beira da rodovia, porque os mortos são os donos dos carros.
            - Estranguladas? – falou o velho arregalando os olhos.
            - Isso mesmo, estranguladas. Então vou perguntar mais uma vez, e acreditar no que o senhor falar, mas por favor, fale olhando para meus olhos! Esse rapaz aí atrás é mesmo o seu neto?
            Nonô demorou alguns segundos encarando o policial, esses segundos atormentaram Iago, que sentiu seu coração disparar, mas depois desse pequeno impasse, o velho sorriu novamente e respondeu:
            - É meu neto sim senhor! Eu não dou carona pra ninguém, nem pra mulher bonita, imagina que eu ia dar carona prum marmanjo desses.
            - Tudo bem então, senhor. – falou o policial aceitando a resposta do velho. – Só mais uma pergunta: - disse o policial, olhando para a carroceria da caminhonete. - O que o senhor está levando nesses tambores?
            - Lavagem pros meus porco lá no meu sítio, o senhor quer ver?
            - Não, pode ir, pelo cheiro eu já desconfiava.

*****

            O delegado Borges engoliu a comida sem sentir seu gosto. Seu pensamento estava em descobrir quem era o “estrangulador das rodovias” e colocá-lo dentro de uma cela.
            Era em situações dessas que ele sempre se perguntava se o Brasil não deveria ter pena de morte, porque, pra ele, uma pessoa dessas que sai matando à esmo por aí, não pode ser uma pessoa recuperável. Um bandido desses, deve ter algum tipo de doença psíquica, não pode ser normal, e portanto, deve ser irrecuperável. Nesses momentos em que se pega pensando assim, ele até entende os policiais que trabalhavam com ele na capital, e que sempre que prendiam um assassino desses, o apresentava como cadáver. As desculpas eram sempre de que mataram o bandido em legítima defesa.
            Borges se lembra uma vez, que um de seus homens apareceu com o cadáver de um estuprador de crianças, totalmente desfigurado, de tanto que apanhou. O policial disse que foi em legítima defesa, e quando Borges o questionou, dizendo que o estuprador não portava arma alguma, o policial se defendeu dizendo:
- Legitima defesa do cidadão, porque daqui uns anos ele estaria nas ruas de novo, e quem sabe, fazendo coisas muito piores.
Esse dia, e essa resposta, acompanharam Borges desde então. Essa dúvida, martela em sua cabeça, lhe acusando de ter em mãos, o destino, e o julgamento de pessoas cruéis e irrecuperáveis, mas Borges, por princípios, apenas os prende e deixa para o Estado resolver seus destinos. Esse é um de seus principais fantasmas, e toda vez que um bandido sai da prisão e volta a cometer alguma atrocidade, sua consciência pesa. Apesar dele saber que seu papel não é julgar, ele sabe que poderia resolver problemas futuros se agisse de forma diferente.
- Doutor? – disse o investigador sentado à mesa com Borges. – Doutor? Tudo bem?
- Hã...? – respondeu o delegado balançando a cabeça como se saísse de um transe. – O que foi Mélo?
- O senhor está a pelo menos três minutos olhando para o nada, sem piscar, e parecia até sem respirar... Eu fiquei assustado.
- Não é nada, Mélo. Eu estou apenas pensando.
- Acho que o senhor deveria descansar, já faz dias que o senhor não dorme mais do que uma hora ou duas por noite.
- Não dá, - falou o delegado apertando o rosto com as duas mãos, como se tivesse acordando e espreguiçando – dormir, agora, é um luxo que não dá pra fazer.
- O senhor está esquisito hoje, eu volto a te aconselhar que o senhor deveria tentar dormir um pouco, tem muita gente empenhado nesse caso, o senhor não tem que carregar o mundo nas costas.
- Mélo, vou te confessar uma coisa: Eu estou com tanta vontade de prender esse assassino, que se eu pudesse, eu prenderia todo mundo que visse nessa rodovia.
- Crédo doutor... Desse jeito o senhor prenderia até eu...
Borges esboçou um sorriso de canto de boca.
- Puxa, você quase me tirou um sorriso agora Mélo.

*****

Nonô, logo após passar pelo comando, sem dizer uma palavra, saiu da estrada e estacionou a caminhonete no pátio do posto de gasolina, ao lado da viatura do delegado Borges.
            Iago, que estava com o garrote na mão, quando viu a viatura, pegou sua mochila rapidamente e o guardou escondido debaixo de algumas roupas.
            - Porque o senhor parou aqui?
            - Vamo comê arguma coisa e despois a gente continua a viagem. Já é mais de uma hora e eu to com o estomago doendo.
            - Mas o senhor não falou que iria parar, e parou logo do lado de uma viatura?
            O velho olhou para o garoto a seu lado, examinando-o de cima abaixo. Por um momento, Nonô pensou se, ter mentido para o policial no comando, dizendo que Iago era seu neto, havia sido a coisa certa.
            - Fica tranquilim meu fí! Si eu tivesse que entregá ocê eu tinha entregado lá atrás pros guarda.
            - Tudo bem, - falou Iago abrindo a porta e deixando Fred sair primeiro, para logo em seguida sair também – o senhor pode ir lá almoçar, que eu vou só até o banheiro e espero o senhor aqui ao lado da caminhonete.
            - Mas ocê num tá com fome?
            - Eu não!
            - Ocê não tá com fome, ou não tá com dinheiro? – perguntou o velho percebendo a situação do rapaz.
            - E... Estou sem dinheiro.
            - Ah... Então ocê é meu convidado, pode vir que eu pago seu almoço.
Iago, Nonô e Fred seguiram até a porta do restaurante, no mesmo instante que Borges e o investigador que estavam almoçando saíam. Quando Iago avistou os dois e percebeu que eram policiais, abaixou-se para afagar Fred, como se estivesse brincando com o cachorro, mas o movimento abrupto do rapaz, chamou a atenção do delegado Borges, que passou por eles encarando o rapaz, que agachado, não percebeu interesse do policial.
“Eu devo estar ficando louco – pensou o delegado – é só um rapaz brincando com seu cachorro... Ele não tem cara de assassino, e ainda parece estar acompanhado do velho ao seu lado.”

*****

Nonô conversou com Fred, e o mandou ficar sentado do lado de fora do restaurante enquanto eles entravam para almoçar. O cachorro sentou-se calmamente, em posição de sentido, como um cachorro treinado, e apenas seguiu seu dono com seus olhinhos remelentos, e viu quando ele e Iago passaram por uma catraca, e sumiram dentro do restaurante.
- Vamos sentar ali, - disse Nonô apontando para a área de fumantes.
- Porque ali? Ali é a área de fumantes.
            Antes de ir abastecer seu prato, o velho Nonô passou pelo balcão, pediu uma cerveja e um cigarro, e virando-se para o rapaz, disse:
            - Ocê bebe cerveja?
- Bebo.
- Intão, leva essa cerveja e esse cigarro lá pra nossa mesa, eu tô vendo que ocê tá doido pra fumá. Eu vou colocá comida pra mim enquanto ocê fuma, e depois ocê coloca comida procê.
Iago sentou-se à mesa, e acendeu o cigarro tremendo, como se aquilo fosse a coisa mais deliciosa do mundo, e depois de três longas tragadas, onde o rapaz chegou até a fechar os olhos e sorrir como se estivesse experimentado o “manjar dos deuses”, ele pareceu se recuperar da abstinência.
- Rapaz, mas que vício ruim esse hein! – falou Nonô sentando-se e sorrindo com cara maliciosa. – Eu fiquei olhando procê, e a sua cara quando ocê colocou essa porcaria na boca, era cara de quem tava tendo um orgasmo! Crédo em cruz!
- Se o senhor acha que é porcaria, porque então me pagou esse maço de cigarros?
- Uai, paguei porque quem vai colocar essa porcaria pra dentro é você, e não eu. E quem manda no que deve ou não entrar no seu corpo é ocê e não eu.
Iago achou engraçada a explicação do velho Nonô. A dias que o menino, fugitivo de casa, não se identificava com alguém. Mas aquele velhinho carismático conseguiu sua simpatia.
- O que o senhor achou daquele comando?
- Como assim? O que eu achei?
- O senhor viu o que o policial falou de estar procurando alguém que tem matado pessoas por aí.
- É... Eu vi.
- E porque o senhor mentiu, falando que era meu avô?

*****

- Mélo, - disse Borges ao investigador, que já havia a se acomodado na direção da viatura – me aguarda aí, que eu vou até o banheiro dar uma lavada no rosto.
O peso dos dias acordados estavam mesmo sobrecarregando as costas do delegado, que estava aponto de explodir de tensão e cansaço.
Borges seguiu até a frente do restaurante, onde viu Fred sentado à porta, esperando seu dono, e de longe, olhou para a mesa onde Nonô e Iago conversavam. A imagem do rapaz, abruptamente abaixando para brincar com o cachorro, mais uma vez voltou à sua mente. Os policiais treinados enxergam coisas além do que as pessoas comuns enxergam em algumas situações. Eles percebem a linguagem corporal e a naturalidade dos movimentos das pessoas, mas algumas vezes, o estresse das situações acentuam essa percepção, e era por isso, que o delegado deixou passar batida, a dúvida que teve quando viu a cena do rapaz abaixando-se para brincar com o cachorro.
Agora, vendo o velho e o rapaz almoçando tranquilos, pareceu acalmar o coração do delegado, que entrou no banheiro, para lavar o rosto e tentar despertar um pouco.

*****

- Eu menti nem sei porque. – respondeu o velho olhando para os olhos de Iago. – Inda mais agora pensando que ocê é o tal do estrangulador.
- Eu? – falou Iago com cara de susto. – De onde o senhor tirou essa ideia?
- Iago, meu fí... Pode ficá tranquilo que se eu fosse te entregá, tinha te entregado lá pro policial. Eu sou vivido, primeiro ocê escondeu aquele tal de garrote, e despois, pela cara que ocê feiz a hora que viu o comando... Só se eu for bobo pra não sabê que ocê é o matador.
Iago abaixou a cabeça, deu uma longa tragada em seu cigarro, e com um sorriso insano, falou:
- Tudo bem, o senhor tem razão, sou eu mesmo, e saiba que quando entrei na sua caminhonete, dependendo da sua conversa, eu iria te matar.
- Me matar? – falou o velho franzindo o cenho.
- Isso mesmo! - continuou o rapaz ainda esboçando um sorriso. – Mas agora não tenho mais essa vontade. Sabe de uma coisa? O senhor é a pessoa mais legal que eu encontrei nos últimos dias. Ou melhor, nos últimos anos. O senhor se preocupou comigo, me deu atenção, me deu conselhos, procurou saber quem eu era, o que eu fazia, o que eu queria, e ainda me pagou cigarro mesmo achando que cigarro é ruim, mas disse que eu deveria decidir sobre o que era bom pra mim ou não... Ou seja, o senhor me respeitou!
Iago parou de falar por um instante, bebeu um gole de cerveja, e olhou fundo nos olhos de Nonô, para em seguida continuar:
- Meu pai arrumou outra família. Largou da minha mãe. E minha mãe, por sua vez, arrumou outro marido. Os dois nem pensaram em mim. Cada um apenas pensou em si mesmo. Do lado do meu pai, a minha madrasta me rejeitou, e tudo o que meu pai fazia, era pelos filhos dela. Eles tem roupas boas, brinquedos bons, estudam em escolas boas, enquanto eu, virei órfão de pai vivo. Do lado de minha mãe, meu padrasto também me excluiu da família. Eu era apenas uma sombra dentro da minha casa, vagando por aqui e por ali, sem que ninguém me notasse. Eu acho que conversei mais com o senhor em uma hora que estamos juntos, do que em dez anos com o meu padrasto.
- Puxa, - falou o velho esfregando os olhos – deve ser ruim mesmo. Mas isso não justifica matar pessoas.
- Pra mim justifica sim! – disse o rapaz alterando a voz. – Eu quero ser importante, quero ser notado. Quero que as pessoas saibam que eu existo! Quero que meu pai e minha mãe se importem comigo. Quero mostrar para meu padrasto e minha madrasta, que eles deveriam ter me dado mais atenção.
- E matando as pessoas por aí, ocê acha que vai ser reconhecido?
- Vou, - respondeu Iago sorrindo – eu vou ser reconhecido! As pessoas ainda não viram meu rosto, mas elas estão com medo do “estrangulador das rodovias”, todos já sabem que eu existo. A polícia está atrás de mim. Se um dia eles me pegarem, meu rosto vai aparecer no Fantástico, no jornal Nacional, na Band, na Record, no SBT... Todos vão saber que eu existo. E quando alguém me entrevistar eu vou falar pra todo mundo que eu fiz isso porque eu queria ser alguém! Vou falar que meu pai e minha mãe, apenas transaram e me deixaram nascer, mas nunca me deram atenção, apenas me deram um nome, mas nunca reconheceram esse nome, como o nome de seu filho.
Lágrimas escorreram do rosto de Iago, sua voz e sua feição, variaram do êxtase à tristeza profunda, à medida que ia contando sua história. Para um simples desavisado que não soubesse o que estava se passando, Iago poderia estar bêbado ou era louco, mas Nonô estava entendendo tudo perfeitamente.
- Calma Iago! – disse o velhinho sabiamente. – Você está fazendo a coisa errada, tirando a vida das pessoas assim, apenas para ter reconhecimento.
- Eu posso mesmo estar errado. Mas as pessoas que eu tirei a vida também ficaram famosas. Apareceram na TV, tiveram seu segundo de glória. Todas elas me disseram que queriam ser famosas. O senhor disse que não, que queria ser anônimo. O senhor foi o único que disse isso, e o primeiro que se importou comigo.
O menino se levantou, pegou o maço de cigarros, bebeu mais um gole de cerveja, e virando-se para Nonô, falou em tom de despedida:
- Não sei porque, mas eu me identifiquei com o senhor. Mesmo me irritando, eu me senti importante conversando com o senhor, por isso, eu vou seguir o meu caminho e o senhor segue o seu.
- Ocê não quer seguir comigo, eu posso te ajudar mais, essa vida ruim sua pode acabar.
-  Obrigado seu Nonô, - disse Iago virando-se e saindo – pode ficar tranquilo, que quando alguém me prender, e eu for dar uma entrevista, eu não vou falar nada do senhor, afinal, o senhor nem deseja ficar famoso.
O velho Nonô ficou ali, sentado, enquanto o menino estranho, branco feito leite, e com cara de poucos amigos, se afastou e sumiu de vista.

*****

O delegado Borges durante o restante do dia, ficou transitando entre os diversos comandos que a polícia, a seu pedido, fazia nas principais rodovias da região.
Ele ainda estava com a esperança de que hoje seria o dia em que chegaria perto do estrangulador das rodovias. Mas uma sensação estranha, o contrariava, dizendo que apesar dessa certeza de chegar perto, hoje ainda não seria o dia da prisão do assassino, e por isso, o delegado examinava um por um dos passageiros de todos carros onde pôde acompanhar a abordagem de seus homens. O delegado procurava por olhares, gestos, falas, expressões corporais, qualquer coisa que demonstrasse algum tipo de suspeita. Mas até o momento, ele não conseguiu encontrar nada que delatasse ninguém.
- Doutor! – disse um policial de dentro de uma viatura que estacionou abruptamente ao lado de Borges. – Acabaram de ligar pra gente, dizendo que encontraram mais um carro abandonado na beira da rodovia!
Essa informação gelou a alma do delegado Borges. Ele sabia que devia ser mais um assassinato. No fundo, o delegado contava com a possibilidade, de que os vários pontos de comando em várias rodovias, fosse mexer com o brio do assassino, e que se sentindo desafiado, ele resolvesse matar mais gente em menos tempo.
- Puta que pariu! – berrou o delegado dando um soco no ar. – Onde este carro está?
- Perto de Barretos doutor, na rodovia Faria Lima, sentido a cidade de Colômbia.
O delegado Borges franziu a testa, e passou a mão no cabelo, enquanto olhava para o chão, se perguntando, porque isso estava acontecendo com ele.
- O cara estava indo em direção da cidade de Rio Preto, e agora resolveu voltar pra trás e ir em direção a cidade de Colômbia? Isso só pode ter uma explicação, ele deve estar querendo atravessar a ponte de Colômbia e passar para o estado de Minas Gerais. Talvez ele esteja achando que se ele passar pro lado de lá, a gente não vai atrás dele.
- Mas não vamos mesmo né doutor? – falou o soldado dentro da viatura, alertando-o. - Em outro estado, a polícia de São Paulo não tem mesmo como interferir.
- Não vamos o cacete! Eu vou até o inferno atrás desse cara! Mas antes de ir até o inferno, eu vou tomar minhas providências, - gritou o delegado sacando seu celular.
- O que o senhor vai fazer?
- Vou ligar agora para a delegacia de Colômbia, e avisar que esse filho da puta está indo naquela direção. Quero uma tropa de choque em cima daquela ponte, não passa nada e nem ninguém que não seja esmiuçado. Não passa de carro, a pé, de bicicleta, de jeito nenhum! Eu quero que eles procurem tudo, até a cor da cueca de todas pessoas que tentarem passar para Minas eu quero saber!

*****

Priscila dirigia tranquilamente, ouvindo um CD ao vivo do U2. Ao seu lado, um rapaz um pouco calado, com cara de cansado, branco feito leite, que ela acabara de deixar entrar em seu carro.
- Você gosta muito do U2? – perguntou o rapaz.
- Gosto, - respondeu ela sorrindo para a pergunta que parecia obvia – porquê? Você não gosta?
- Gosto muito! Você consegue ouvir o som da multidão ao fundo? Gritando o nome do Bono Vox?
- É demais né? – falou ela com cara de deslumbrada. – Imagina a adrenalina que não deve ser, um estádio inteiro gritando seu nome? Isso deve ser bom demais... Olha aqui pro meu braço! Até arrepia...
- Ah... Então você tem vontade de ficar famosa...

*****

Seu Nonô estacionou a sua caminhonete velha, “quase vermelha”, ao lado do chiqueiro, dentro de seu sitio. Os porcos, acostumados com o barulho da caminhonete, vieram correndo, se espremer em frente ao cocho, onde o velho iria colocar a comida dos bichos.
Fred subiu em cima da traseira da caminhonete para ver seu dono, e parceiro, abrir os dois tambores de comida, e como que admirando o velho Nonô, parou e balançou o rabo, alegremente.
O velho, vendo o companheirismo de seu velho amigo, sorriu mostrando os poucos dentes e falou:
- É Frédão... O rapaz escapou da gente hein! Ele era uma boa porção de comida pros porco... Tá difícil encontrá carne nova assim nas rodovia.
Enquanto falava, o velho Nonô retirou de dentro do tambor, alguns pedaços de braço, mãos, pés, uma cabeça, pedaços de carne irreconhecíveis e vísceras humanas, tipo: coração, fígado, estômago e coisas assim. Ainda sorrindo, continuou a conversa com seu companheiro canino:
- Eu sei que os nosso amigo porco, perdero uma carninha nova, mas pelo menos, enquanto o Iago estivé matando as pessoa por aí, os desaparecidos que a gente trazê pra engordar os porco, vão tudo fica na conta dele. Quem vai acreditá, quando ele falá que não matou as pessoas que desaparecero? E ainda mais que elas desaparecero no mesmo trecho de rodovia que ele matô tanta gente?
O velho Nonô abasteceu os cochos, onde os porcos famintos, em um instante devoraram toda a “comida”, abaixou-se ao lado de seu amigo canino e afagando sua cabeça falou:
- Hehehe... Quem vai suspeitá de dois velhinhos carismáticos, pobres, trabalhadores, criadores de porcos, e caipiras como nós dois? Hehehehe. Ninguém né?