Pinga e frita
Era o primeiro dia de Carlos no Eiffel.
Ele tinha trabalhado em restaurantes menores, que serviam bons pratos, mas nada tão elaborado como neste.
O chef Roberto era super exigente. Desde que voltou ao Brasil e montou o Eiffel, que servia pratos da alta gastronomia, com inspiração na cozinha francesa, ele se tornou um dos astros da gastronomia paulistana.
O Eiffel, em pouco tempo ganhou duas estrelas Michelin, e a fila para reservar uma mesa, chegava a três meses.
— Carlos! — despejou Roberto com olhar sério. — Um pato com redução de vinho na mesa nove.
— Sim chef! — respondeu Carlos, ainda tímido, mas querendo demonstrar atitude.
Na cozinha, os cozinheiros e chefs, sem conversar, cortavam, deglaceavam, fritavam, assavam, arrumavam no prato e mandavam suas joias para os garçons.
Roberto, andando pelo salão, sorriu, ao ver que o clima era de alegria.
Os clientes comiam, bebiam, conversavam e davam boas risadas, fazendo a aura do lugar brilhar.
Ao passar pela mesa do doutor Marques, ele reparou que o pato, que havia mandado Carlos fazer, não estava no padrão dos pratos do restaurante.
Furioso, ele entrou pela cozinha, indo direto ao cozinheiro, que agora fazia um risoto de limão-siciliano.
— Eu não mandei você fazer um pato para a mesa nove?
— Sim, senhor, e eu já fiz!
— Não, o senhor não fez.
— Fiz sim — respondeu Carlos enrugando a testa — já até mandei para o garçom.
— O senhor fez outra coisa irreconhecível! Aquilo que o doutor Marques está comendo, não é o pato com redução de vinho aqui da nossa casa! É outra coisa.
— O senhor me desculpe, mas é o pato que eu sempre fiz. E quando vocês me mostraram o prato, achei muito parecido com o meu.
— Parecido? — esbravejou Roberto vermelho de raiva. — Aqui não existe isso! Existem os meus pratos! Minhas criações! E tudo tem que ser perfeito.
— Mas ai eu não tenho culpa! Vocês não me ensinaram o passo a passo dos pratos de vocês.
— Eu achei que estava contratando um cozinheiro profissional quando te contratei.
— Mas eu sou profissional!
— Não! Não é...
Nesse momento, o maître entra na cozinha anunciando que um dos clientes quer falar com o cozinheiro que fez o pato com redução de vinho.
Roberto se assusta! Ele sabe que o doutor Marques é um cliente muito exigente. Profundo conhecedor da alta gastronomia. E uma pessoa muito influente.
— Doutor Marques... — falou Roberto com um sorriso amarelo, recebendo o cliente na porta da cozinha.
— Roberto, — respondeu Marques com os olhos vermelhos e marejados — quem cozinhou aquele pato?
— Foi o Carlos, um cozinheiro novato. — respondeu o chef, apontando para seu cozinheiro, que olhava a cena com os olhos arregalados.
— Meu filho! — começou o doutor Marques. — O seu pato, me levou diretamente para a casa da minha avó, lá na minha infância, no interior de Minas Gerais.
— Desculpe, dout...
— Não tem do que se desculpar Roberto! — falou o doutor, sorindo para o dono do restaurante, e se aproximando do cozinheiro, envolvendo-o num abraço. — Esse foi o melhor pato com redução de vinho que eu comi em toda a minha vida! Ainda hoje eu vou falar para todo mundo, que aqui no Eiffel, finalmente a cozinha brasileira apareceu!
— O... Obrigado, senhor... — respondeu Carlos titubeante.
— Qual técnica você utilizou no preparo desse pato, meu filho?
— Se chama pinga e frita.
— Eu sabia! — bradou Marques sorrindo e chorando ao mesmo tempo. — A técnica das velhas cozinheiras da roça! Aquelas que vieram das senzalas, ou fugidas da guerra na Europa! Maravilhoso!
— Sim, senhor, — falou Carlos com feição de alívio — eu aprendi essa técnica ainda quando era criança, com a minha avó, que morava em um sítio, no interior de São Paulo. Ela aprendeu com a avó dela, que era cozinheira em uma fazenda.
— É uma técnica ancestral, — completou Marques olhando para todos, como se estivesse em um palco — que consiste em ir fritando a proteína, no caso dessa, foi o pato, e ir colocando pequeninas quantidades de água, para soltar aquela delícia que se forma no fundo da frigideira. Não deixa de ser uma deglassagem, que vocês fazem uma única vez, mas que nessa técnica é feita inúmeras vezes, durante o cozimento.
— Isso mesmo! — concordou Carlos sorrindo.
— Meu filho, — falou Marques secando as lágrimas com um lenço de seda — quando eu vi aquela crosta cor de ouro cobrindo todo o pato, eu sabia que estava na frente de um prato feito por um grande cozinheiro! Parabéns.
Depois que o doutor Marques foi embora, cuidadosamente acompanhado pelo chef Roberto, a cozinha voltou ao normal.
No final do expediente, Roberto entra novamente pela cozinha e diz, chamando a atenção de todos:
— Todos os cozinheiros e chefs, prestem atenção! Quem de vocês conhece essa técnica de pinga e frita, que o Carlos usou para fazer o pato do doutor Marques?
— Nós escutamos a explicação. — respondeu um dos chefs.
— Mas já fez? Não!? Não fez...?
Os chefs e cozinheiros, treinados e formados na alta gastronomia francesa, ficaram mudos, olhando uns para os outros, com cara de quem não sabiam de nada.
— Então, — continuou Roberto apontando para Carlos — amanhã cedo, vocês vão entrar uma hora antes, e treinar essa técnica. O Carlos vai demonstrar para todos.
— Chef... — falou Carlos levantando a mão, como um aluno da escola primária.
— Fale...
— Eu estava pensando... a gente pode deixar os cogumelos como acompanhamento, como é o prato original do senhor. Mas se a gente cozinhar mandioca e depois saltear na manteiga, e acrescentar ao prato... a sedosidade dela vai contrastar com a acidez da redução de vinho, e o conjunto vai ficar delicioso.
— Escute aqui Carlos — retrucou Roberto com os olhos arregalados — você aqui é pago para cozinhar e fazer e não para pensar!
— Desculpe senhor.
— Se você acha que vai ficar bom, faça! Não fique pensando! Faça essa mandioca, me apresente e se realmente ficar bom, a gente faz desse jeito!
— Tudo bem senhor. — concordou Carlos com um meio sorriso.
— Agora vamos embora! Vamos, vamos, vamos! Até amanhã cedo! Uma hora antes! Sejam pontuais! Entendido?
Amigos! E assim, chegamos ao final dessa série de postagens sobre gastronomia Brasileira, principalmente da Paulistânia. Procurei falar de fatos históricos, dando ênfase na relação pessoal através das épocas e a contribuição dessas pessoas, no que a gente come hoje!
Muitos dizem que o Brasil não tem uma culinária autêntica, mas infelizmente, não sabem o que estão dizendo.
Talvez, por falta de conhecimento, talvez por preconceito.
Espero ter conseguido mostrar para vocês o que queria e que vocês tenham gostado.
Usei um tom bem humarado, lúdico e as vezes emocionado... Acho que tudo isso tem que vir no pacote. No pacote de nossos ancestrais. No pacote de nossas despensas. No lombo dos burros. No fundo das caravelas... Nas cozinhas do Brasil.
Adorei acompanhar essa série e que bom Carlos se deu bem. Trouxe sua simplicidade e essa agradou ao melhor cliente. Tri legal! abração, tudo de bom,chica
ResponderExcluirChiquinha! Que bom que gostou.
ResponderExcluirEstou fazendo uma pesquisa e essa série vai virar um livro.
Tem muitas outras coisas que não coloquei aqui.
Um abração minha amiga!!
Olá, amigo Eduardo!
ResponderExcluirMuito boa a série e fechou com chave de ouro na mensagem oportuna semana num mundo cheio de "chefs" para tudo querendo nos moldar à maneira deles sem nos darem a oportunidade de inovarmos... ou se sermos nós mesmos.
É o tal efeito manada que impera ainda em nossas cabeças preconceituosas.
Tenha uma nova semana abençoada!
Abraços fraternos de paz
Olá Rosélia!
ExcluirObrigado pelo carinho.
Você está sempre aqui!
Um abraço do André!!!!!
André Edualdo...
ExcluirKkkkkkkkkkk
ExcluirOlá, amigo André!
ExcluirDesculpe-me a grande falha, realmente um nada tem a ver com o outro e minha cabeça precisa aprender rapidamente a diferença dos nomes.
Mil perdões e obrigada por ser gentil e respeitoso com todos, faz toda diferença no mundo virtual.
Seja feliz e abençoado!
Abraços fraternos de paz
Que isso Rosélia!!!
ExcluirEu e o Eduardo somos chapas!!!!
Andre,
ResponderExcluirque coisa mais bonita toda a série.
A história que se desenrola na cozinha com seu caos organizado, suas panelas fumegantes, seus egos em ebulição é, na verdade, uma grande conversa sobre o Brasil, sobre quem somos e de onde vem o que comemos. Carlos, esse menino que pensa com a barriga e sonha com o fogão aceso, nos ensina mais do que técnicas. Ele nos lembra que a cozinha é lugar de invenção, de afeto e também de resistência. A técnica “pinga e frita” é quase uma heresia diante da alta gastronomia francesa ali representada e, no entanto, é exatamente ela que conquista o paladar do doutor Marques. Isso me comove.
Roberto, o chefe severo, é uma figura conhecida. Não apenas nas cozinhas, mas em muitos espaços onde o saber tradicional tenta calar o saber popular. Ele diz a Carlos: “Você aqui é pago para cozinhar e fazer, não para pensar.” E essa frase ecoa como denúncia. Porque é exatamente o contrário: o cozinheiro pensa, sim, e muito. Pensa nos ingredientes que tem, na boca que vai comer, na história que aquele prato carrega. E quando o texto se despede, ele nos abraça. A última parte é uma carta afetuosa, um manifesto silencioso em defesa da nossa culinária, da nossa ancestralidade, do nosso jeito único de combinar o simples com o sublime. “No pacote de nossos ancestrais. No pacote de nossas despensas.” Que beleza isso. Dá vontade de fechar os olhos e sentir o cheiro do feijão no tacho, do alho dourando na manteiga, da mandioca assando devagar como o tempo dos nossos. Essa crônica é também um aviso: que a cozinha brasileira não precisa pedir licença para ser levada a sério. Ela já é, por si só, um grande livro de memórias, com seus capítulos cozidos em fogo baixo, escritos por mãos anônimas e corajosas, como a de Carlos que ousou pensar. E ainda bem que pensou.
Parabéns!
Fernanda
Fernanda! Que legal que gostou, minha amiga.
ExcluirVocê foi uma que esteve presente em todos os capítulos, e isso é muito legal.
Eu vou organizar essas postagens, com mais alguns textos que tenho na cachola, e fazer um livro.
Vai ser nesse formato.
Eu tinha mais uns 10 capítulos para escrever, juntando as crônicas com contos.
Vamos ver, talvez eu faça mesmo.
Um abraço e obrigado pelo carinho.
Eu estava sem coragem de fazer essa seleção de postagens sobre a culinária, achando que iria desagradar os seguidores do blogue, mas parece que deu certo.
André, meu amigo querido,
ExcluirFico emocionada de verdade ao ler suas palavras. Acompanhar cada capítulo foi um presente pra mim desses que a gente guarda com cuidado, feito receita de avó escrita num papel já meio gasto, mas cheio de alma.
Saber que você pensa em transformar isso em livro me alegra demais. Tem coisa ali que merece virar livro sim, dessas que a gente folheia devagar, com café do lado e coração atento. E sobre juntar as crônicas todas eu voto com força! Tem tanta beleza tbm nesses diálogos que criamos por aqui, tanta troca verdadeira. Não subestime esse carinho todo ele também é literatura. Vai em frente. Escreve os dez, escreve mais. Vai fundo nesse caminho que já é tão seu.
Com carinho,
😘
Obrigado, minha amiga!
ExcluirSe virar livro eu te mando um!!
E quando ele chegar, você vai estar proibida de comer miojo.
kkkkk combinado!
ExcluirUm desfecho à altura da série!
ResponderExcluirAliás, tu demonstrou estar por dentro do assunto, né? Você faz graça na cozinha? Na alta gastronomia??
Vou falar, eu acho esse negócio de "alta gastronomia" uma besteira. Não, não vou menosprezar as artes gastronômicas que grandes chefes fazem, mas aquilo é mais arte que comida...só acho. Bom mesmo é a "baixa gastronomia"..hahhh
E do jeito que o restaurante do Chef Roberto tem clientela chique de nariz empinado, acho que haverá reclamações para o novo jeito abrasileirado do tal pato com vinho.
Eu gosto de cozinhar.
ExcluirMas comida bruta! Tipo a cozinha da Paulistânia mesmo.
E sobre a história por trás dos fatos, se deve por que eu estudo o assunto.
Desde a faculdade de história, eu já gostava desse assunto.
Quando li pinga e frita, pensei que fosse uma cachacinha e batata frita de tira-gosto.
ResponderExcluirKkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.
ExcluirCachaceiro é isso aí...
Que bacana essa série querido André!
ResponderExcluirPuxa, fiquei encantada mesmo porque amo ler um texto bem escrito dotado de muitas referências da nossa cultura com muito bom humor!!
Esse ultimo, particularmente foi muito emocionante em razão da sapiência do jovem cozinheiro e chef que se esgueirou na culinária de seus antepassados e fez a melhor crosta do mundo no pato. Também, a pinga é excelente para criar um certo " caramelo" na comida, e a vantagem é que o álcool evapora e deixa apenas o gostinho da cana-de-açúcar ( chega a me dar água na boca) rsrs
Pena que a série acabou mas que incrível que vai virar uma coletânea, espero que leve adiante a ideia de transformar em um livro, pois tem muita informação valiosa em seus capítulos.
Obrigada de coração!!
Maravilhosa semana!!
Oi Dri!!
ExcluirQue bom que gostou!
Sabe, a tecnica existe mesmo e se chama pinga e frita.
Mas o que se pinga é agua. Vai colocando aos poucos e quando a agua evapora, o óleo começa a frita, aí forma acrosta no fundo da panela, e pinga mais um pouquinho de água, e vai fazendo isso até caramelisar.
Coisa de caipira que cozinha dimais da conta, sô!!!!!
Muito apetitosa toda a série, André
ResponderExcluirGostei e aprendi de onde vem nossa culinária tão peculiar e apreciada .
E aí quando inicia outra série bacana , meu chef ?
Abraço e aplausos .
Kkkkkkkkkkkkkkkk, meu chef é bom!!! Obrigado Lis.
ExcluirSérie, não sei... Mas essas baboseiras que eu escrevo, já, já.
Oi, André (ou Eduardo André kkkkkk) é, tem disso também, recebi muitos nomes nessa blogosfera!
ResponderExcluirBem, rindo aqui da amiga Roselia, digo que até onde consegui ler que adorei!
Lógico que vou ler o resto que perdi, obras em casa, menino, que loucura.
Mas esse capítulo que você está encerrando, está ótimo. Eu também gosto de criar, e tenho acertado! Na verdade, Andre, sempre modifico alguma coisinha, e dá certo. Ao ler sobre o coitado do cozinheiro, fiquei com pena na hora, mas já sabia o desenrolar dessa história...
Te aplaudo, e vou ler o resto calmamente, quando puder sentar na frente da telinha.
Você foi ótimo nessa viagem culinária... Aprendi um monte. "Obrigadérrimo rsss."
O corretivo grifou de vermelho, mas é assim mesmo os agradecimentos. 😁😅
Grande abraço daqui!!!
Bom dia Tais!
ExcluirQue bom que gostou, minha amiga.
Tenha um lindo fim de semana.