Abri os olhos, me sentei, balancei a cabeça, como se quisesse colocar as ideias no lugar.
Demorei um pouco para entender o que tinha acontecido.
Eu não sentia dores.
Estranhamente, eu não sentia dores.
Pedaços da minha moto estavam espalhados pela rodovia.
Pessoas chorosas andavam para cá e para lá...
Uma ambulância chegou.
Parou bruscamente.
Dela saíram três paramédicos correndo.
Dois foram direto para o carro que estava virado de ponta cabeça, no meio do canteiro central da rodovia.
O outro correu até o acostamento, e começou a procurar.
As pessoas apontavam para a rodovia, para o carro que capotou e para os pedaços da minha moto.
— Estranho... — falou uma moça se dirigindo a mim.
— O que é estranho?
— Eu não sinto dores.
— Você também se envolveu no acidente?
— Sim... — ela murmurou me olhando encabulada. — Você é o cara da moto?
— Sou. — respondi. — Eu também não sinto dores. Também estou achando estranho, mas deve ser a adrenalina.
— Não é a adrenalina, — falou um homem entrando na conversa.
— Como assim? — perguntou a moça.
— Você está vendo aquele saco ali ao lado do seu carro?
— Estou...
— Seu corpo está lá dentro.
— Ela morreu? — eu perguntei arregalando os olhos.
— Morreu, uai! — respondeu o velho colocando a mão no ombro da moça. — E você, — continuou o velho se dirigindo a mim — vê aquele capacete ali no meio da rodovia?
— Sim... Ele deve ter saído quando a gente bateu.
— Não, — respondeu o velho com um sorriso de canto de boca — o que saiu foi a sua cabeça!
— Caraca, velho! Então eu também morri... Que bosta! E você ainda sorri?
— É que são tantas pessoas que venho buscar, que pra mim, a reação de vocês é sempre engraçada.
— Meu Deus, meu senhor! — falou a moça com cara de choro. — Eu não estou achando graça nenhuma.
— Me desculpe Isabel Cristina. Eu não vou mais sorrir.
— Puxa vida! Eu estava no meu último ano de faculdade. Estudei a vida toda. Tinha arrumado o estágio dos meus sonhos.
— Eu sei minha filha... Mas infelizmente a vida é passageira, e acaba num piscar de olhos.
Eu caminhei até o capacete. Não podia ser verdade o que aquele velho estava dizendo.
Cheguei até ele, me abaixei, tentei pegar, mas minha mão atravessava o capacete, como se eu fosse feito de vento.
Caralho! — pensei — O velho está falando a verdade.
Quando percebi que tinha morrido, as pessoas da cena do acidente, os carros, os paramédicos e as ambulâncias sumiram de repente!
Um vento forte, que começou com cheiro de enxofre e terminou com perfume de lavanda, bateu em meu rosto.
Nisso, dois carros se aproximaram de mim.
O velho desceu de um deles, e um cara estranho, de terno preto, gravata borboleta, chapéu-coco vermelho e sorriso brilhante, desceu do outro.
— Nós viemos buscar vocês dois. — falou o cara do terno.
— Eu não te ofereço nada, a não ser paz, e uma boa recuperação. — falou o velho.
— E eu, — começou o cara do terno, como se fosse um vendedor de comercial de aplicativo chinês — ao contrário desse aí; ofereço esse mundo todo! Ofereço riquezas, ofereço reinos, dinheiro, poder...
Eu olhei para a moça, que estava ao meu lado, com a cara ainda chorosa, e perguntei:
— E aí? Qual a gente vai encarar?
— Acho melhor a gente ir com o velho.
— Porque você acha isso?
— Porque, pelo menos no meu caso, eu vivi correndo atrás de riquezas, poder, dinheiro, bens materiais, a vida inteira.
— É... eu também.
— Então — cochichou a moça no meu ouvido. — E olha a cara de malandro desse cara de terno.
— Verdade... — decidi. — Vamos com o velho. Quem sabe a gente descançe um pouco.
Dizendo isso, a gente entrou no carro do velho, que sorriu para o cara do chapéu-coco e disse:
— Lú... Seu discurso tem que mudar...
— Vá pro inferno Gabriel!
O velho desceu de um deles, e um cara estranho, de terno preto, gravata borboleta, chapéu-coco vermelho e sorriso brilhante, desceu do outro.
— Nós viemos buscar vocês dois. — falou o cara do terno.
— Eu não te ofereço nada, a não ser paz, e uma boa recuperação. — falou o velho.
— E eu, — começou o cara do terno, como se fosse um vendedor de comercial de aplicativo chinês — ao contrário desse aí; ofereço esse mundo todo! Ofereço riquezas, ofereço reinos, dinheiro, poder...
Eu olhei para a moça, que estava ao meu lado, com a cara ainda chorosa, e perguntei:
— E aí? Qual a gente vai encarar?
— Acho melhor a gente ir com o velho.
— Porque você acha isso?
— Porque, pelo menos no meu caso, eu vivi correndo atrás de riquezas, poder, dinheiro, bens materiais, a vida inteira.
— É... eu também.
— Então — cochichou a moça no meu ouvido. — E olha a cara de malandro desse cara de terno.
— Verdade... — decidi. — Vamos com o velho. Quem sabe a gente descançe um pouco.
Dizendo isso, a gente entrou no carro do velho, que sorriu para o cara do chapéu-coco e disse:
— Lú... Seu discurso tem que mudar...
— Vá pro inferno Gabriel!
— Eu não... Lá vocês se vestem muito mal. Esse seu terninho preto já está batido demais.
André,
ResponderExcluirque narrativa intensa e arrebatadora!
Você conseguiu traduzir em palavras aquilo que quase nunca ousamos encarar: a fronteira delicada entre a vida e a morte, esse instante em que tudo se revela de repente, sem aviso, como um estalo. O conto traz uma força especial porque coloca diante de nós a escolha mais profunda de todas: o que buscamos em vida e para onde inclinamos nosso coração. Não se trata apenas do fim físico, mas da forma como conduzimos nossos dias se atrás de ilusões e poderes passageiros, ou cultivando o que, de fato, permanece.
O diálogo entre o velho (símbolo da paz, da sabedoria e do descanso) e o homem do terno
(a sedução das ilusões) é, ao mesmo tempo, literário e espiritual. Um lembrete de que a morte não é só encerramento: é revelação. E que, diante dela, máscaras, posses e vaidades simplesmente caem. Parabéns pela escrita que prende, provoca e deixa a gente refletindo muito tempo depois da leitura.
Carinhosamente,
Fernanda