segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Raízes da culinária brasileira, principalmente da Paulistânia - Final

 


Pinga e frita




Era o primeiro dia de Carlos no Eiffel. 
Ele tinha trabalhado em restaurantes menores, que serviam bons pratos, mas nada tão elaborado como neste.
O chef Roberto era super exigente. Desde que voltou ao Brasil e montou o Eiffel, que servia pratos da alta gastronomia, com inspiração na cozinha francesa, ele se tornou um dos astros da gastronomia paulistana.
O Eiffel, em pouco tempo ganhou duas estrelas Michelin, e a fila para reservar uma mesa, chegava a três meses.
— Carlos! — despejou Roberto com olhar sério. — Um pato com redução de vinho na mesa nove.
— Sim chef! — respondeu Carlos, ainda tímido, mas querendo demonstrar atitude.
Na cozinha, os cozinheiros e chefs, sem conversar, cortavam, deglaceavam, fritavam, assavam, arrumavam no prato e mandavam suas joias para os garçons.
Roberto, andando pelo salão, sorriu, ao ver que o clima era de alegria.
Os clientes comiam, bebiam, conversavam e davam boas risadas, fazendo a aura do lugar brilhar.
Ao passar pela mesa do doutor Marques, ele reparou que o pato, que havia mandado Carlos fazer, não estava no padrão dos pratos do restaurante.
Furioso, ele entrou pela cozinha, indo direto ao cozinheiro, que agora fazia um risoto de limão-siciliano.
— Eu não mandei você fazer um pato para a mesa nove?
— Sim, senhor, e eu já fiz!
— Não, o senhor não fez.
— Fiz sim — respondeu Carlos enrugando a testa — já até mandei para o garçom.
— O senhor fez outra coisa irreconhecível! Aquilo que o doutor Marques está comendo, não é o pato com redução de vinho aqui da nossa casa! É outra coisa.
— O senhor me desculpe, mas é o pato que eu sempre fiz. E quando vocês me mostraram o prato, achei muito parecido com o meu.
— Parecido? — esbravejou Roberto vermelho de raiva. — Aqui não existe isso! Existem os meus pratos! Minhas criações! E tudo tem que ser perfeito.
— Mas ai eu não tenho culpa! Vocês não me ensinaram o passo a passo dos pratos de vocês.
— Eu achei que estava contratando um cozinheiro profissional quando te contratei.
— Mas eu sou profissional!
— Não! Não é...
Nesse momento, o maître entra na cozinha anunciando que um dos clientes quer falar com o cozinheiro que fez o pato com redução de vinho.
Roberto se assusta! Ele sabe que o doutor Marques é um cliente muito exigente. Profundo conhecedor da alta gastronomia. E uma pessoa muito influente.
— Doutor Marques... — falou Roberto com um sorriso amarelo, recebendo o cliente na porta da cozinha.
— Roberto, — respondeu Marques com os olhos vermelhos e marejados — quem cozinhou aquele pato?
— Foi o Carlos, um cozinheiro novato. — respondeu o chef, apontando para seu cozinheiro, que olhava a cena com os olhos arregalados.
— Meu filho! — começou o doutor Marques. — O seu pato, me levou diretamente para a casa da minha avó, lá na minha infância, no interior de Minas Gerais.
— Desculpe, dout... 
— Não tem do que se desculpar Roberto! — falou o doutor,  sorindo para o dono do restaurante, e se aproximando do cozinheiro, envolvendo-o num abraço. — Esse foi o melhor pato com redução de vinho que eu comi em toda a minha vida! Ainda hoje eu vou falar para todo mundo, que aqui no Eiffel, finalmente a cozinha brasileira apareceu!
— O... Obrigado, senhor... — respondeu Carlos titubeante.
— Qual técnica você utilizou no preparo desse pato, meu filho?
— Se chama pinga e frita.
— Eu sabia! — bradou Marques sorrindo e chorando ao mesmo tempo. — A técnica das velhas cozinheiras da roça! Aquelas que vieram das senzalas, ou fugidas da guerra na Europa! Maravilhoso!
— Sim, senhor, — falou Carlos com feição de alívio — eu aprendi essa técnica ainda quando era criança, com a minha avó, que morava em um sítio, no interior de São Paulo. Ela aprendeu com a avó dela, que era cozinheira em uma fazenda.
— É uma técnica ancestral, — completou Marques olhando para todos, como se estivesse em um palco — que consiste em ir fritando a proteína, no caso dessa, foi o pato, e ir colocando pequeninas quantidades de água, para soltar aquela delícia que se forma no fundo da frigideira. Não deixa de ser uma deglassagem, que vocês fazem uma única vez, mas que nessa técnica é feita inúmeras vezes, durante o cozimento.
— Isso mesmo! — concordou Carlos sorrindo.
— Meu filho, — falou Marques secando as lágrimas com um lenço de seda — quando eu vi aquela crosta cor de ouro cobrindo todo o pato, eu sabia que estava na frente de um prato feito por um grande cozinheiro! Parabéns.   
Depois que o doutor Marques foi embora, cuidadosamente acompanhado pelo chef Roberto, a cozinha voltou ao normal. 
No final do expediente, Roberto entra novamente pela cozinha e diz, chamando a atenção de todos:
— Todos os cozinheiros e chefs, prestem atenção! Quem de vocês conhece essa técnica de pinga e frita, que o Carlos usou para fazer o pato do doutor Marques?
— Nós escutamos a explicação. — respondeu um dos chefs.
— Mas já fez? Não!? Não fez...?
Os chefs e cozinheiros, treinados e formados na alta gastronomia francesa, ficaram mudos, olhando uns para os outros, com cara de quem não sabiam de nada.
— Então, — continuou Roberto apontando para Carlos — amanhã cedo, vocês vão entrar uma hora antes, e treinar essa técnica. O Carlos vai demonstrar para todos.
— Chef... — falou Carlos levantando a mão, como um aluno da escola primária.
— Fale...
— Eu estava pensando... a gente pode deixar os cogumelos como acompanhamento, como é o prato original do senhor. Mas se a gente cozinhar mandioca e depois saltear na manteiga, e acrescentar ao prato... a sedosidade dela vai contrastar com a acidez da redução de vinho, e o conjunto vai ficar delicioso.
— Escute aqui Carlos — retrucou Roberto com os olhos arregalados — você aqui é pago para cozinhar e fazer e não para pensar!
— Desculpe senhor.
— Se você acha que vai ficar bom, faça! Não fique pensando! Faça essa mandioca, me apresente e se realmente ficar bom, a gente faz desse jeito!
— Tudo bem senhor. — concordou Carlos com um meio sorriso.
— Agora vamos embora! Vamos, vamos, vamos! Até amanhã cedo! Uma hora antes! Sejam pontuais! Entendido?


Amigos! E assim, chegamos ao final dessa série de postagens sobre gastronomia Brasileira, principalmente da Paulistânia. Procurei falar de fatos históricos, dando ênfase na relação pessoal através das épocas e a contribuição dessas pessoas, no que a gente come hoje!
Muitos dizem que o Brasil não tem uma culinária autêntica, mas infelizmente, não sabem o que estão dizendo. 
Talvez, por falta de conhecimento, talvez por preconceito.
Espero ter conseguido mostrar para vocês o que queria e que vocês tenham gostado.
Usei um tom bem humarado, lúdico e as vezes emocionado... Acho que tudo isso tem que vir no pacote. No pacote de nossos ancestrais. No pacote de nossas despensas. No lombo dos burros. No fundo das caravelas... Nas cozinhas do Brasil.


4 comentários:

  1. Adorei acompanhar essa série e que bom Carlos se deu bem. Trouxe sua simplicidade e essa agradou ao melhor cliente. Tri legal! abração, tudo de bom,chica

    ResponderExcluir
  2. Chiquinha! Que bom que gostou.
    Estou fazendo uma pesquisa e essa série vai virar um livro.
    Tem muitas outras coisas que não coloquei aqui.

    Um abração minha amiga!!

    ResponderExcluir
  3. Olá, amigo Eduardo!
    Muito boa a série e fechou com chave de ouro na mensagem oportuna semana num mundo cheio de "chefs" para tudo querendo nos moldar à maneira deles sem nos darem a oportunidade de inovarmos... ou se sermos nós mesmos.
    É o tal efeito manada que impera ainda em nossas cabeças preconceituosas.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Abraços fraternos de paz

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Rosélia!
      Obrigado pelo carinho.
      Você está sempre aqui!
      Um abraço do André!!!!!

      Excluir

Obrigado pela sua visita e pelo seu comentário, volte sempre!