Olá
amigos e seguidores do blog! Eu relutei muitas vezes em publicar aqui
no meu espaço, este que é pra mim um dos melhores textos que eu já
escrevi. Mas hoje, resolvi postá-lo. Sei que ele é bem grande e que as
vezes muita gente não vai querer perder tempo com a leitura, mas sei
também que as pessoas que seguem meu blog, que é quase que
exclusivamente um blog de textos e crônicas, é um publico diferenciado e
ávido por boa leitura! Então meus amigos, esse texto é grande mas não
demora mais do que quinze minutos para ser lido. Trata-se de uma
aventura que acontece na Idade Medieval, com todas as características
tanto políticas, quanto religiosas, e culturais daquele período
histórico. Onde a igreja usava e vendia um Deus mau e punitivo, para poder dominar as pessoas, as cidades e até os países. Nem os reis
da época ousavam ir contra o que um papa, ou alguém do alto escalão da
igreja falava.
As
pessoas mais atentas e com algum conhecimento literário, vão ter uma
surpresa no final do texto onde uma pessoa real, vai se apresentar como
personagem desse conto.
Obrigado
por segurem meu blog, obrigado por lerem meus textos e obrigado
por deixarem um pouquinho de seu tempo na leitura desse conto, que é
um de meus filhos mais importantes, e que tenho muito orgulho de lhes apresentar!
Virgem Maria
O sol
raiava no horizonte, e o vilarejo acordava, com suas ruas ainda vazias.
A
fumaça saia lentamente pelas chaminés dos fogões à lenha e os bolos e pães
começavam a ficar prontos, enquanto a agua para o café era fervida.
Era
início de inverno. A neve caíra a noite toda de uma forma branda, e agora, aos
primeiros raios de sol, ela começou a derreter, e isso a fez misturar com a
terra das ruelas formando um barro espesso, que grudava nas rodas da carruagem
que trazia o Monsenhor Fernando e o alcaide Carlos Arguiles.
Junto
com eles vinham mais quatro guardas da brigada da santíssima corte da igreja e
da cidade de Manzaneda, armados com suas espadas, armaduras e escudos, como se
fossem a uma guerra. Na verdade iriam mesmo, mas não sabiam ainda quem era o
inimigo. Sabiam apenas, que era um inimigo de Deus e dos homens de bem,
católicos e defensores dos bons costumes.
O
barulho do estanque da carruagem e das ordens para os cavalos pararem entrou pela
casa adentro, dona Matildes cutucou seu marido Armando sussurrando:
- Tem
alguém na nossa porta!
- Deixem que chamem, uma hora dessas da
madrugada e ainda no domingo, talvez nem seja aqui.
A
porta da carruagem rangeu e duas pessoas desceram, deu pra ouvir os passos das
botas de couro de coelho com salto de madeira chegarem até bem perto da porta,
quando alguém bateu com batidas firmes e anunciou em voz alta:
- Ô
de casa! Monsenhor Fernando e o alcaide Arguiles estão aqui para falar com o
senhor Juan de Castro!
Dona
Matildes olhou para seu marido assustada e perguntou: - O prefeito e o chefe da
igreja querendo falar com o Juanito? Deve ser um engano.
- Calma
mulher que vou abrir a porta - falou Armando de um salto só até a fechadura. -
Olá senhor alcaide, a benção Monsenhor Fernando, (Armando disse isso se
inclinando e beijando a mão do líder da igreja), o que está acontecendo?
- Senhor
Juan de Castro?
- Não
Monsenhor, eu sou Armando de Castro, pai de Juan, o que está acontecendo?
- Queremos
ver o senhor Juan de Castro!
- Matildes,
- falou Armando virando para sua esposa - chame o Juanito por favor, depressa!
– depois virando-se novamente para o chefe da igreja, perguntou: - Posso saber
o que está acontecendo Monsenhor? - Falou Armando voltando-se para o “santo
homem”.
- O
frei Augusto do convento de Manzaneda pegou esse escrito mal intencionado no
meio das coisas do seu filho Sr. Juan de Castro - falou o Monsenhor balançando
um pedaço de papel - esse escrito fala de um amor carnal de um homem por uma
mulher, e como o senhor bem sabe, não são permitidos os poemas escandalosos no
nosso reino. O papa proibiu todos os poemas carnais subversivos e só é
permitido escrever sobre a vida ou a história dos santos homens da igreja e
obras sacras!
- Mas
o que está escrito de tão grave nesse papel? - Perguntou Armando aflito.
- Um
poema carnal, e isso só pode vir de uma mente suja e influenciada pelo demônio
- falou Monsenhor Fernando dobrando e colocando o papel no bolso - posso falar
agora com seu filho?
Foi
então que dona Matildes apareceu com um garotinho de 14 anos, trazendo-o pela
mão até a porta.
-
Quem é esse menino? - Perguntou o Monsenhor.
- Esse
é meu filho Juan de Castro - disse dona Matildes abraçando Juanito como uma
galinha protege seus pintinhos debaixo das azas. - Como o senhor pode ver ele é
apenas uma criança!
Foi
então que o alcaide Sr. Arguiles se aproximou do casal aflito e examinando
Juanito de cima abaixo, fez uma careta entortando a boca e franzindo a testa
para depois de um longo momento falar:
- É
monsenhor Fernando, isso é pior do que a gente estava esperando... Um garotinho
desses escrevendo uma coisa daquelas só pode mesmo ser um bruxo encarnado!
- Realmente Arguiles; guardas! - falou
monsenhor Fernando bradando autoritariamente. - Vamos levá-lo para a masmorra
enquanto espera o julgamento para o dia da fogueira santa.
Acordando com o dia e com o barulho na
rua, várias pessoas saíram de suas casas e começaram a se aproximar daquela
triste expedição matinal. As pessoas tentavam entender o que estava acontecendo
e alguns até se revoltaram, mas eles sabiam que a palavra do Monsenhor Fernando
era a última a ser dita e nem pensavam em questioná-lo.
Seu Armando entrou na frente de
Juanito, como se fosse um escudo, protegendo-o, e desesperadamente gritou
suplicando: - Como vocês vão querer fazer isso com uma criança, vocês não veem
que ele é inocente? Não vou deixar que levem meu filhinho. Quero saber o que
foi que ele escreveu de tão grave!
Dona
Matildes agarrava ainda mais forte seu filho que ainda bêbedo de sono não
conseguia entender nada do que estava acontecendo, sabia apenas que aquelas
pessoas estavam falando dele e que seus pais estavam aflitos.
- Guardas, peguem o Sr. Juan de Castro
à força se for preciso. - ordenou o alcaide Arguiles.
Um dos guardas, homem forte, forjado
para a guerra, com uma armadura que brilhava com o reflexo dos primeiros raios
de sol, empunhando uma espada de lâmina tão larga e afiada que cortaria uma
pessoa ao meio facilmente, se aproximou de Armando e sem fazer nenhum esforço
deu com o cabo da espada em sua cabeça fazendo-o desmaiar. Armando ainda teve
tempo de olhar fixamente para os olhos do guarda e conseguiu enxergar que ele não
estava feliz em cumprir essa ordem, depois disso, o mundo se apagou...
A
água bateu no rosto de Armando que começou a recobrar os sentidos lentamente.
Primeiro, zonzo, ele viu uma imagem desfocada se mexendo em sua frente, trêmula
e embaçada, que fez Armando buscar lá no fundo de sua mente de quem seria
aquela figura. Depois de piscar os olhos
várias vezes Armando esforçou-se e reconheceu a imagem de Matildes, que se materializou
na sua frente. No primeiro momento ele não entendeu muita coisa, e olhou com
indecisão para o mundo, não sabendo o que se passava. Foi então que olhando à
sua volta, ele viu que todos os seus vizinhos estavam ali parados, com cara de
triste, como se velassem algum defunto. Algumas vizinhas, com o terço na mão,
oravam pedindo a Deus que nada lhe acontecesse, enquanto sua esposa,
desesperada, batia em seu rosto e gritava: - Armando! Armando! Levaram Juanito!
Levaram Juanito!
- Levaram Juanito? – disse finalmente
acordando de seu transe. - E agora mulher? Temos que ir buscá-lo!
- Mas como meu marido, se foi o
próprio monsenhor Fernando quem veio pessoalmente buscá-lo? Eles vão queimar
nosso filho!
Armando se levantou apoiado pelo
vizinho Sr Argemiro, andou lentamente até os fundos de sua casa, abriu a porta
de um antigo armário, pegou seu cinto transversal, ajeitou a bainha de sua
espada, apanhou a espada que estava dependurada no armário, embainhou-a, foi
até seu cavalo, arriou-o, deu água, deu um pouco de milho e veio até a frente
de sua casa puxando o cavalo pelo arreio. Os amigos e vizinhos ainda estavam
ali consolando dona Matildes, que chorava desesperada. Dona Matildes olhou para
o marido e conhecendo bem o quanto ele era teimoso e irredutível quando tomava
uma decisão, conseguiu apenas falar: - Meu marido eu sei que você vai atrás de
salvar o nosso filho, mas se isso não for possível, por favor, pelo menos volte
você, vivo, aqui pra nossa casa.
- Calma Matildes. – falou o marido
mansamente. - Vamos voltar os dois.
Armando ainda sentindo dores na
cabeça, olhou zonzo para a estrada que saia do vilarejo em direção as muralhas
do castelo de Manzaneda, e depois de alguns passos de seu cavalo, percebeu que
alguém vinha em sua direção, cavalgando, gritando e acenando para que ele o
esperasse. Armando parou o cavalo e se virou para ver quem seria aquele que
gritava e acenava insistentemente. Para sua surpresa, tratava-se de rapaz,
muito jovem que se aproximou e com uma saudação apresentou-se: - Olá senhor
Armando, eu me chamo Miguel, conheço seu filho lá da escola do convento, ele é
uns quatro anos mais novo do que eu.
- Olá
Sr. Miguel - respondeu Armando sem saber no que pensar.
- O
Sr. pode me chamar de Miguelito, eu estudo as leis dos homens e da Igreja lá na
escola, e vi que condenaram seu filho sem julgamento algum, para queimar na
fogueira, por isso resolvi ir buscá-lo junto com o senhor!
- Não
meu jovem...
-
Miguelito, por favor!
- Não
Miguelito, isso pode ser perigoso, eu estou disposto a trocar minha vida pela
do meu filho, mas você não tem nada a ver com isso.
-
Pode deixar Sr Armando... Vou lhe ajudar mesmo assim e nenhum de nós vai perder
a vida. Eu vou junto com o senhor, mesmo o senhor querendo ou não.
Armando coçou a barba rala, franziu a
testa e pensou se aquilo estava correto. Olhou para aquele rapazinho franzino,
trajado com roupas rústicas de pano grosseiro, montado em uma mulinha velha e
magra, sem espada e sem porte de cavaleiro. Analisou-o de cima abaixo, até que
fixou seu olhar nos olhos de Miguel, percebeu pelo brilho deles, que não teria
jeito. O rapazinho iria mesmo até o fim.
-
Vamos então Miguelito. Fazer o quê? Você parece ser mais teimoso do que essa
mula velha que monta.
- Hahahahahaha,
o senhor não conhece minha mula, ela é velha, mas é muito competente.
Armando apenas olhou de rabo de olho
para aquele menino e balançou a cabeça pensando em como poderia se arrepender mais
adiante por deixá-lo ir.
A
muralha de Manzaneda já podia ser avistada, Sr Armando e Miguel cavalgavam a
mais de duas horas, quando perto da cidade, parado debaixo de uma figueira, um
guarda fez sinal para que eles parassem.
-
Onde é que vocês vão? - Perguntou o guarda de farda impecável e elmo reluzente.
-
Vamos à cidade.
- Eu
sei quem é o senhor. – disse o homem retirando o elmo. - É o pai do menino que certamente
vai ser queimado, acusado de ser bruxo.
- Sou
eu mesmo, e vim buscar meu filho.
O
guarda olhou fixamente para Armando depois encarou a Miguel, deu um passo para
trás colocando a mão sobre sua espada e disse: - Como é que vocês dois, um
velho e um garoto, querem salvar esse menino? Vocês não entendem que desde
quando o monsenhor foi pessoalmente buscá-lo, é porque ele já foi julgado?
-
Julgado por quem? - falou Miguel. - Eu não vi julgamento nenhum, nem o poema
eles deixaram a gente ler. O pai, Sr. Armando, nem sabe do que o filho está
sendo acusado.
- Pelo
que vejo, você é fraco de músculos, mas é forte com as palavras não é garoto. Mas
vamos supor que vocês possam chegar perto de seu filho, Sr. Armando, como é que
vocês querem salvar o menino? Vocês por acaso tem algum plano?
- Nós
vamos conversar com ele primeiro e ver o que foi que ele escreveu no tal poema,
e depois, vamos elaborar a nossa defesa no caso - falou Miguel demonstrando
coragem. - Porque? O senhor tem ordens para não nos deixar
passar?
- Não,
mas eu estou aqui esperando, porque sabia que o pai viria atrás de seu filho. –
disse o guarda encarando Miguelito. - Me digam uma coisa, como vocês querem
falar com o menino se ele está preso na masmorra?
- Não
sei como - falou Armando - mas a gente vai falar com ele custe o que custar!
-
Tudo bem. - falou o guarda pegando um pedaço de papel. - Deem esse papel, com
essas ordens, ao chefe da guarda que fica no período da tarde na masmorra, seu
nome é Antônio Fernandes e, por favor, não falem com mais ninguém a não ser ele,
digam que é da parte de Natanael, acho que assim vocês poderão ver o menino,
mas penso que conversar com seu filho – disse virando-se para Armando – pode
até ser possível, mas convencer Monsenhor Fernando a fazer um julgamento às
claras, com a presença do povo, e com direito a defesa; isso vai ser difícil.
-
Obrigado bom homem. - agradeceu Armando. - Ainda bem que nem toda a raça de
cavaleiros está atrelada as covardias e desmandos da santa igreja.
- Não
fale assim senhor, pois eu ainda sou um cavaleiro e tenho um juramento. Não me
faça arrepender de ter lhes ajudado!
O guarda Natanael, com cara de poucos
amigos, deu um passo para trás e estendeu a mão curvando um pouco seu corpo
como num cumprimento e com um aceno de cabeça, olhou para as muralhas como se
estivesse dando passagem aos dois em direção a cidade. Eles entenderam o recado
e continuaram sua jornada.
Fazia
algum tempo que Armando não vinha à cidade, toda sua vida era trabalhar todos
os dias, de sol a sol, no plantio de cevada, trigo, batatas e na criação de
porcos, cabras e coelhos. Raramente Armando tirava um dia para descansar com a
família, geralmente quando fazia isso era porque a neve estava tão alta que
emperrava a porta, deixando-os enclausurados dentro de casa. Seus produtos eram
trazidos para serem vendidos e trocados na cidade pelo seu vizinho Honorato,
que era quem geralmente vendia todos os produtos de todos os agricultores da
sua aldeia. Por isso, Armando olhava admirado ao perceber o quanto a vila havia
crescido e como as casas haviam se agrupado em volta do castelo, da prefeitura
e do mosteiro da santa Igreja.
As
pessoas andavam pela rua com pressa parecendo que iriam a algum lugar
importante. Deu pra ver que na vila havia a loja do ferreiro, a loja dos
mantimentos trazidos da roça e a loja de produtos importados, entre eles,
especiarias vindas da África, azeite e vinho dos Algarves e lindos tecidos
vindos do Oriente Médio. Armando e Miguel também repararam, que algumas
mulheres usavam lindos vestidos de algodão e que algumas crianças já calçavam
sapatos de couro e não chinelos de pano de saco com solado de madeira, como era
lá na aldeia. “Meu Deus! - pensou Armando. - Como a cidade está mudada...”
Os
dois andaram um pouco pela cidade procurando algum lugar para comer algo e
esperar, pois o turno da tarde na masmorra ainda iria demorar algumas horas e o
guarda Natanael falou que só deveriam entregar a carta ao tal chefe da guarda, Sr.
Antônio Fernandes. Entraram os dois numa taberna e ajeitaram-se numa mesa. Uma
mulher sorridente chegou perto deles e perguntou:
- Bom
dia senhores, vão querer beber alguma coisa? Hoje temos vinho e cerveja
fermentada de trigo.
-
Traga vinho e um bom pedaço de queijo com alguns pães para acompanhar a bebida.
- falou Armando.
- Bom
mesmo Sr. Armando, porque eu estou com muita fome. –falou Miguel, que
virando-se para a atendente, perguntou: - Onde é o banheiro aqui senhora?
- Lá
nos fundos meu rapaz, pode seguir por aquele corredor e virar à esquerda.
Miguel
levantou-se e seguiu pelo longo corredor ladeado por mesas, todas cobertas com
linho branco e com um candelabro de quatro velas ao centro, a taberna já devia
ser bem antiga porque as teias de aranha desciam do telhado até os arcos que
sustentavam as paredes, e assim, formavam desenhos que faziam a imaginação
passear sobre a idade e as estórias que aquele lugar já viveu. Miguel olhou a
sua volta e viu um homem sentado atacando ferozmente um prato de cozido de
cabra, deu pra ver que este homem usava um uniforme igual ao do guarda da
estrada, Miguel passou encarando-o tanto que o homem parou por um momento de
comer e olhou fixamente para o rapaz.
Quando
chegou ao banheiro, Miguel foi direto até a pia, lavar as mãos e o rosto,
porque a poeira da estrada havia deixado seu rosto imundo e ele não conseguiria
almoçar sujo daquele jeito, enquanto lavava o rosto, ele não percebeu, que
alguém entrou furtivamente, feito um gato, pé ante pé, e se colocou bem atrás
dele com a espada em punho esperando alguma reação sua. Miguel, distraído, se
virou, e deu de cara com a ponta da espada em frente seu nariz.
- Posso
saber porque o senhor passou por mim me encarando daquele jeito guri? -
Perguntou o soldado faminto que a pouco estava sentado à mesa junto ao
corredor.
-
Nada senhor! - falou Miguel tremendo de medo. - Eu apenas estava olhando.
- De
onde é você rapaz?
- Daqui
de Manzaneda mesmo, eu moro na área de plantação, meu pai tem um pedaço de
terra...
- E o
que você está fazendo aqui na vila?
-
Eu e o Sr. Armando meu vizinho viemos buscar o filho dele que foi preso
injustamente, viemos procurar o soldado Antônio Fernandes, mas como o turno
dele só começa daqui a algumas horas nós resolvemos comer alguma coisa antes.
-
De onde vocês conhecem o Antônio Fernandes?
- Foi
o soldado Natanael quem nos indicou pra falar com ele. O soldado Natanael deu
até uma carta de apresentação pra gente.
- Onde
está essa carta? Me deixe vê-la!
- Está
com o Sr. Armando lá na mesa.
O
soldado aproximando-se de Miguel, o segurou pela orelha e saiu puxando para
fora do banheiro falando: - Vamos ver se você está falando a verdade.
Quando
passaram pelo batente da porta do banheiro, Miguel percebeu que Armando não
estava mais sentado à mesa, foi então que o guarda que já quase arrancava sua
orelha falou aos berros: - Onde está seu amigo, moleque mentiroso?
- Estou
aqui atrás de você companheiro - falou Armando encostando um punhal no pescoço
do guarda - solte meu amigo Miguel e jogue sua espada no chão que nada vai te
acontecer!
O
guarda soltou a orelha de Miguel que latejava ardendo feito pimenta e jogou sua
espada ao chão.
- Miguel,
pegue essa espada - falou Armando – e o senhor, soldado, - disse encostando o
punhal mais forte no pescoço do guarda - sente-se nesta cadeira a sua frente e
ponha as mãos atrás da cabeça.
O
soldado sentou-se e olhou para aquelas duas figuras a sua frente, um velho e um
guri estavam lhe rendendo, logo ele um guarda da real corte da prefeitura de
Manzaneda. Foi então, que com um simples golpe de sua bota, o guarda derrubou a
espada das mãos de Miguel, e como um leão à caça, pulou em cima de Armando imobilizando-o
e retirando o punhal de sua mão. Depois dessa facilidade toda, falou em meio a
gargalhadas:
-
Vocês dois achavam mesmo que poderiam render uma pessoa talhada na arte da
guerra? Onde está a tal carta que Natanael mandou vocês me entregarem?
- O
senhor é Antônio Fernandes?
- Capitão
Antônio Fernandes meu rapaz, vamos, deixem eu ver a carta logo!
- Aqui
está Capitão Fernandes - falou Armando entregando a carta ao homem - o soldado
Natanael falou que o senhor nos ajudaria pois é um homem de bem.
- Hummm,
deixe eu dar uma olhada nisso.
O
capitão Fernandes leu tudo com atenção e depois de umas coçadelas na cabeça,
olhou como se não acreditasse naquela situação, e falou: - Esse Natanael só me
arruma encrenca mesmo! Tudo bem, vocês podem ir até a porta da masmorra ao pôr
do sol sem falta, podem entrar que eu já vou deixar avisado, vou deixar vocês
conversarem com esse seu filho alguns momentos, mas não serão muitos, então,
pensem no que vão conversar para não perderem tempo.
Dizendo
isso, o capitão Fernandes fez um gesto de cumprimento e, ao sair pela porta da
taberna, frisou olhando para seu Armando com o dedo em riste:
- Até
ao pôr do sol então, e não se atrasem.
O
último raio de sol brilhava no horizonte quando Armando e Miguelito se
apresentavam as portas da masmorra conforme o combinado com o capitão Antônio
Fernandes. Na verdade, ele era chamado por todos de capitão, mas era apenas um
soldado que tinha um pouco de privilégios, pois servia à guarda do reino de
Aragão a muitos anos, nunca fora condecorado “cavaleiro” pois nunca participara
de guerras, nem recebido o código de honra dos cavaleiros da santa igreja, mas
certamente gozava de muito prestígio entre os nobres e homens importantes do
reino, tanto que fora designado para chefiar a masmorra de Manzaneda, cidadela
que abrigava o mais importante mosteiro de frades copistas oficiais da santa
igreja católica e que tinha como representante maior o ilustre Monsenhor
Fernando que praticamente ditava as regras do reino. A população do reino de
Aragão, e principalmente dos arredores de Manzaneda diziam: primeiro Deus,
depois o papa e em seguida Monsenhor Fernando.
Bastaram
duas batidas na porta, para que uma fresta se abrisse e um soldado encapuzado
aparecesse. Com apenas um movimento de olhos o soldado os convidou para entrar.
Em
seu interior, a masmorra tinha um fedor de umidade e bolor que deixava o ar tão
pesado que rapidamente era percebido por qualquer um que viesse da rua. O negro
das paredes emboloradas ganhava contornos assombrados pelas luzes das tochas,
que presas nas paredes dos corredores, lutavam bravamente contra o breu para
trazer um pouco de claridade para aquele triste local.
O
guarda guiou-os até a sala do capitão Antônio Fernandes sem dizer uma única
palavra. Chegando a porta, apenas apontou com a mão trêmula e acenou com um
gesto de cabeça para que eles entrassem.
O
capitão Antônio Fernandes estava esperando, e, logo que entraram ele disse apressado:
-
Coloquem esses capuzes e sigam até o final do corredor, seu filho está na
última cela à esquerda, não deixem ninguém ver a cara de vocês e não conversem
com ninguém, não falem alto para que outros presos não os escutem, não falem
nomes e não ousem citar que me conhecem, senão vocês não sairão vivos daqui!
Entenderam?
-
Sim Capitão - falou Miguelito - nós nunca ouvimos seu nome!
Os
cem metros daquele corredor pareciam os cem metros mais compridos que seu
Armando e Miguel já haviam percorrido, no caminho eles passaram em frente
várias celas e viram muitos rostos famintos, sofridos, com doenças e muita
sujeira, na cela não havia água pra banho, havia apenas uma pedra com uma
esteira de palha que servia de colchão e um penico que servia de latrina, as
pesadas grades fechavam aquelas celas como se elas fossem túmulos, que
trancavam em seu interior almas penadas que esperavam a “salvação” que seria
sair dali, mesmo que fosse para uma forca ou para a fogueira. Mais alguns
passos e eles chegaram até a última cela à esquerda, senhor Armando ficou com o
coração chocado quando viu seu filho Juanito, sentado no fundo da cela de
cócoras, segurando suas pernas com seus bracinhos de criança e olhando
fixamente para uma fresta de luz que vinha da rua por uma rachadura na parede
de pedra.
- Filho!
Juanito
não se mexeu e nem acordou do transe de tristeza em que estava mergulhado.
- Ei
Filho, sou eu, o papai!
Juanito
levantou seu olhar para aquelas duas pessoas encapuzadas na porta de sua cela.
O menino fitou os dois por um longo instante, e abriu um leve sorriso assustado
e incrédulo, quando percebeu que um deles era seu pai, que notando o susto do
menino, foi logo fazendo sinal para que ele não gritasse e nem fizesse barulho.
- Papai
– sussurrou Juanito correndo até as grades - como o senhor entrou aqui?
- Fique
tranquilo filho, eu vim pra te levar para casa!
- Mas
como papai? – disse o menino deixando escorrer algumas lágrimas.
-
Ainda não sei filho, mas eu vou te tirar daqui – repetiu Armando, também com os
olhos lacrimosos.
- E
você? - falou Juanito se virando para Miguel que havia retirado o capuz – eu te
conheço da escola, porque você veio junto com meu pai?
- Filho,
- falou seu Armando chamando a atenção de Juan - eu preciso saber se você
escreveu mesmo essa tal poesia?
- Escrevi
sim pai, mas não sabia que era um crime tão terrível...
-Você
se lembra o que escreveu? - perguntou Miguel.
- Lembro
bem.
- Você
poderia declamar essa poesia pra gente escutar?
- Posso
sim:
“Ó
mulher que suga meu ar.
Que
faz minha face enrubescer.
Não
sou nada sem sua presença.
Nem
sequer existo longe de ti.
E
quando chego-me perto de ti, percebo minha insignificância.
Apenas
me sinto uma planta, indefesa, imóvel, que necessita de seus raios! De sua
energia!
Ó
mulher, és a melhor entre as mulheres.
És
aquela por quem meu coração dispara.
És
aquela por quem minha vida grita a plenos pulmões! Quero ser teu escravo, quero
ser teu súdito, quero ser seu!
Agora
e para sempre!
Todos
os homens, se te conhecessem fariam assim como eu!
Jurariam
amor, jurariam fidelidade.
Agora
e para sempre!”
-
Puxa que lindo Juanito. - falou Miguel limpando uma lágrima que teimava em
escorrer. - Você escreveu isso com amor mesmo.
- Filho,
amanhã na hora da execução fale que não foi você quem escreveu!
- Não
posso pai, as perguntas são feitas depois de um juramento sobre a Bíblia
sagrada. E foi eu mesmo que escrevi.
- Eu
sei filho - lutou senhor Armando - mas você vai preferir morrer?
- Eu
sei pai, mas como vou jurar, me salvar agora e depois ir para o inferno
eternamente?
- Deixe
Sr. Armando, nós vamos arrumar uma forma de salvar Juan! O senhor se importa de
ir andando na frente porque eu tenho uma pergunta particular para fazer a ele?
- Pergunta
particular?
- Isso
mesmo, uma pergunta que me veio à cabeça e que talvez seja a nossa salvação,
mas isso é entre eu e o Juan.
O
senhor Armando se ajoelhou junto a grade, segurou a mãozinha do seu filhinho,
lhe deu um beijo na testa, e evitando chorar diante dele, se afastou com o
coração esmagado pela dor de deixar sua cria num lugar tão triste e desumano
como aquele.
As
pessoas da cidadela sabiam que ao raiar do dia a fogueira santa seria acesa e todos
os bruxos e hereges seriam queimados vivos.
Assim
a justiça divina seria feita e essas almas, sofrendo aqui na Terra, com essa
tortura enorme, poderiam talvez ser perdoadas e ganhar a salvação eterna, sem
deixar antes, de passar algum tempo no purgatório, para se purificar e deixar
de vez, a influência maligna sobre seus seres.
Seu Armando
e Miguelito passaram a noite em vigília esperando que a guarda da cidade e os
santos monges trouxessem as pessoas para o sacrifício, assim eles fizeram
turnos onde um ficava acordado três horas passando a “guarda” para o outro que
ficava outras três horas na espera e assim sucessivamente.
Miguelito
até conseguiu dar uns cochilos na escadaria da igreja mas seu Armando não
conseguiu pregar os olhos, pois talvez aquelas fossem as últimas horas de vida
de seu filho, e ele, como pai aflito, ainda não tinha nenhum plano ou saída,
que lhe desse esperança de salvação para Juanito.
As
cinco da manhã o povo começou a chegar das casas e se aglomerar na praça em
frente ao amontoado de lenha que fora milimetricamente colocado ao centro da
praça, com várias madeiras encaixadas e sobrepostas formando uma espécie de
pirâmide, que viraria cinzas, assim que Monsenhor Fernando desse a ordem de
atear fogo.
Ao
cantar dos primeiros galos a comitiva que trazia o alcaide Arguiles, Monsenhor
Fernando, mais uma dúzia de monges e uma grande quantidade de cavaleiros e
soldados, apareceu no final da pequena ruela que começava na porta do convento.
A comitiva vinha em passos quase fúnebres, como aquelas comitivas que
acompanham um caixão para a cova, a frente, os noviços estudantes do convento,
vinham entoando cânticos em latim e rezando ladainhas antigas, enquanto, mais
atrás, alguns monges marcavam o passo com instrumentos de percussão, e a cada quatro
passos eles soltavam um baque surdo e pesado, no couro cru do tambor, fazendo o
ritmo da comitiva continuar, feito os ponteiros de um relógio, sem atrasar nem
adiantar nenhum minuto.
Após
esses monges três pessoas encapuzadas e com as mãos amarradas pra trás vinham
atrelados uns aos outros por uma corrente que prendiam seus pés, não deixando nenhuma
chance de fuga.
Quando
a comitiva se aproximou da praça da igreja, as pessoas abriram caminho e deram
passagem, até que com rufar dos tambores e um estanque seco a comitiva parou
bem de frente a lenha preparada para a fogueira onde os hereges seriam
queimados.
Monsenhor
Fernando abriu caminho pelo meio da comitiva e se colocou à frente de todos. Quando
viram o Monsenhor, todas as pessoas se dobraram fazendo reverência a ele como
se realmente ele fosse um ser divino ou divinizado por Deus, para guiá-los na
terra. Com gesto suave levantando o braço, o Monsenhor dispensou a todos da
reverência, que se postaram em pé, calados e ávidos pelo show macabro que
estava pra começar.
- E
agora Miguelito o que vamos fazer?
- Calma
senhor Armando, nós vamos dar um jeito de salvar seu filho. - cochichou Miguel
ao pé do ouvido de seu Armando.
Com
grande rufar de tambores, todos os aldeões emudeceram e centralizaram suas
atenções em Monsenhor Fernando, que saudou a todos com o símbolo da cruz de
Cristo e começou a falar:
- Eu,
Monsenhor Fernando, com o poder de julgar e absolver qualquer pessoa, conferido
a mim pelo santo Papa no dia da minha nomeação como homem santo da igreja,
venho aqui dizer para que vocês soldados, amarem essas três almas impuras no
mastro ao centro da fogueira, para que através das labaredas santas eles possam
encontrar o destino que eles mesmo procuraram, quando resolveram se desviar dos
ensinamentos da santa igreja, com seus feitiços, ofensas e heresias.
Os
soldados, acompanhados de mais um rufar de tambores, pegaram os dois homens e
também Juanito, e os encaminharam para o centro da praça, onde o terrível palco
de horrores santos estava armado.
Foi
nesse momento que seu Armando não aguentou, e se jogou aos pés do Monsenhor
gritando:
- Clemência
Monsenhor, peço por meu filhinho que só tem poucos anos e não sabe a heresia
que fez, por favor Monsenhor, pelo amor de Cristo!
Na
multidão, ouve um grande burburinho de vozes cochichando, e os aldeões com
olhares desacreditados, não conseguiam entender a atitude daquele homem.
- Não
fale no nome de Cristo pedindo clemência por um herege; homem sem fé! - bradou
Monsenhor Fernando se desvencilhando de Armando, e virando-se para os guardas
falou: - guardas, segurem esse homem!
Alguns
guardas vieram feito cães raivosos pra cima de seu Armando, mas por sua sorte,
o primeiro que o segurou fazendo sinal aos outros de que tudo estava sob
controle foi Natanael.
- Mas
como o senhor vai queimar um garotinho sem nenhum julgamento? - falou Miguelito
do meio da multidão.
- Como
você ousa contestar a minha autoridade? - respondeu rispidamente Monsenhor
Fernando.
- Eu
ouso porque sei o que Juanito escreveu, e sei que não tem heresia nenhuma.
As
pessoas se entreolharam não acreditando que alguém ousava discutir com o santo
homem.
- Quem
é você meu jovem, que se atreve tanto a atrapalhar a justiça divina. - falou
Monsenhor Fernando já perdendo a paciência.
- Meu
nome é Miguelito.
- Me
perdoe, mas Miguelito não é nome. Como é seu nome?
- Miguel
de Cervantes Saavedra, é meu nome inteiro, e eu estou indignado com a
arbitrariedade desse seu julgamento, ou melhor, dessa condenação sem
julgamento.
- Ah
é senhor Miguel de Cervantes Saavedra? - falou Monsenhor Fernando com uma
feição de superioridade. - E o que você sugere então?
- Eu
sugiro que pelo menos seja dada a palavra a Juanito para que ele possa explicar
sobre esse tal poema.
Monsenhor
Fernando olhou para o povo, acompanhava aquela discussão com muita atenção, e
resolveu ceder um pouco para que sua idoneidade não fosse contestada.
-
Tudo bem - falou concordando - traga aqui o herege Juan de Castro!
Os
guardas trouxeram Juanito, que ainda estava encapuzado e com as mãos amarradas nas
costas e o colocaram junto a Monsenhor Fernando.
-
Tirem o capuz e desamarrem suas mãos. - ordenou o santo homem.
A
olhos atentos esta era uma visão surreal, dois guardas enormes, com aquelas
armaduras reluzentes, e suas espadas afiadas e prontas para atravessar
facilmente as entranhas de qualquer inimigo, desamarrando cuidadosamente, um
garotinho de alguns poucos anos de vida, com a estatura normal de uma criança,
com as mãozinhas normais de uma criança, amaradas como se fossem de um leão
prestes a atacar e engolir toda aquela multidão.
Monsenhor
Fernando pegou uma Bíblia, colocou-a na frente de Juanito e falou:
- Senhor Juan de Castro, o senhor reconhece
que esta é a Bíblia sagrada e que ela é a palavra de Deus entre os homens na
terra?
Juanito
olhou a sua volta, viu os rostos das pessoas que o encaravam como se encarassem
o próprio demônio, com olhares de desaprovação e condenação, e no meio da
multidão, reconheceu seu pai, com o olhar marejado, aflito e triste que a
situação merecia.
- Sim
Monsenhor Fernando – falou o menino - eu reconheço que a Bíblia é a palavra de
Deus.
-
Senhor Juan de Castro - prosseguiu Monsenhor Fernando - o senhor sabe que um
juramento feito publicamente e com a mão sobre a Bíblia é um juramento muito
sério e que se tratado com injúrias pode te levar para o inferno sem salvação?
- Sim
Monsenhor Fernando eu sei.
- Senhor
Juan de Castro o senhor sabe que queimando na fogueira santa, você poderá pagar
seu crime com o sofrimento e depois de um tempo no purgatório terá absolvição
para sua alma?
- Sim
Monsenhor eu sei.
Monsenhor
Fernando, com um sorriso de sarcasmo, olhou para a multidão e com um leve
balançar de ombros como se dissesse “eu tentei ajudar” continuou o juramento:
-
Senhor Juan de Castro, o senhor, então ciente de tudo o que eu lhe expliquei,
mesmo assim, ainda quer fazer o juramento com a mão sobre a Bíblia?
Juanito
dá uma rápida olhadela para seu pai que faz que sim com a cabeça e diz: - Sim senhor eu quero.
Sua
resposta causou um alvoroço sobre a multidão que não entendia como uma pessoa
preferia a punição eterna ante a chance de salvação.
- Senhor
Juan de Castro repita comigo - falou Monsenhor Fernando. – Eu, Juan de Castro.
- Eu
Juan de Castro.
- Prometo
com as mãos sobre a Bíblia.
- Prometo
com as mãos sobre a Bíblia.
- Reconhecendo nela a
palavra de Deus.
- Reconhecendo nela a palavra de
Deus.
- Que falarei toda a verdade, nada
mais que a verdade e não impedirei com nenhuma injúria que meu julgamento seja
feito na mais correta justiça.
- Que falarei toda a verdade, nada
mais que a verdade e não impedirei com nenhuma injúria que meu julgamento seja
feito na mais correta justiça.
- Muito bem senhor Juan de Castro -
falou Monsenhor Fernando entregando a Bíblia para um dos frades - o senhor está
sobre juramento santo, então me diga, foi o senhor mesmo que escreveu aquele
poema?
- Sim senhor, fui eu mesmo.
- O senhor sabe que é proibido
escrever qualquer coisa que tenha como tema os sentimentos carnais entre homens
e mulheres?
- Sim
senhor eu sei.
- O
tal poema que o senhor escreveu o senhor se lembra dele?
- Sim me lembro.
- Ele foi escrito para uma mulher?
- Sim senhor, foi escrito para uma
mulher!
- Hahahaha, obrigado senhor Juan de Castro! -
falou Monsenhor Fernando se virando aos soldados. - Amarrem ele de novo e vamos
começar o sacrifício da purificação de sua alma.
Foi
então que do meio da multidão Miguelito, subiu em cima de um barril e começou a
declamar em alto e bom som: - “Ó mulher que suga meu ar.
Que
faz minha face enrubescer.
Não sou nada sem sua presença.
Nem sequer existo longe de ti.
E quando chego-me perto de ti,
percebo minha insignificância.
Apenas me sinto uma planta,
indefesa, imóvel, que necessita de seus raios! De sua energia!
Ó
mulher, és a melhor entre as mulheres.
És aquela por quem meu coração
dispara.
És aquela por quem minha vida grita
a plenos pulmões! Quero ser teu escravo, quero ser teu súdito, quero ser seu!
Agora e para sempre!
Todos os homens, se te conhecessem
fariam assim como eu!
Jurariam
amor, jurariam fidelidade.
Agora e para sempre!”
A
multidão atônita e os guardas prostrados como estátuas, encaravam a Miguelito
sem conseguir mexer um músculo enquanto ele declamou todo o poema. Monsenhor
Fernando ao fim da “apresentação” se virou para os guardas e, aos berros
ordenou: - Prendam esse Miguel de Cervantes!
- Calma
Monsenhor, no seu julgamento faltam algumas perguntas. - retrucou Miguelito. -
O senhor não deu chances de Juan de Castro se defender, e fez perguntas que
certamente lhe condenaram sem julgamento algum.
Os
guardas rapidamente chegaram até Miguelito que levantou as mãos colocando-as
atrás da cabeça num claro gesto de que estava desarmado e se entregando.
- Mais
perguntas? - falou Monsenhor Fernando.
- Logicamente
que sim. - respondeu Miguelito sendo levado para perto do Monsenhor pelos
guardas. - Ou o senhor quer que algumas dúvidas sobre sua moral e lisura caiam
como pulgas atrás das orelhas desse povo todo que está aqui assistindo ao tal
“julgamento?”
- Então
faça você as perguntas que salvará o pescoço do senhor Juan de Castro seu
amigo, e faça-as bem feitas, porque ao declamar esse poema o senhor também
cometeu crime de morte.
Miguelito
virou-se para Juanito e falou: - Juan de Castro, o senhor escreveu esse poema
para uma mulher normal ou uma mulher inatingível?
- Senhor
Miguel, eu escrevi para uma mulher inatingível.
- Então
na verdade, o senhor escreveu esse poema para uma mulher especial?
-
Oras! - se irritou Monsenhor Fernando. - Onde essa ladainha vai dar?
-
Calma Monsenhor - falou Miguelito, e virando-se para Juan novamente continuou.
- Senhor Juan de Castro é verdade que o senhor fez esse poema, “preste bem
atenção a minha pergunta”. - Miguelito falou essas últimas palavras em um tom
de apreensão e com um gestual dizendo para Juan entender as entrelinhas da
pergunta. - Para a virgem, Maria?
- O
quê! - intercedeu Monsenhor Fernando. - Rapaz, ele está sobre juramento e se
mentir vai para o inferno...
- Por
favor Monsenhor deixe eu perguntar, assim o senhor atrapalha o julgamento e as
pessoas estão ali esperando e não querem pensar-lhe mal. - virando-se mais uma
vez para Juanito, Miguel voltou a perguntar:
-
Juan de Castro, é verdade que o senhor fez esse poema para a virgem, Maria?
-
A virgem, Maria?
-
Isso. - falou Miguel em tom de afirmação. - A virgem... Maria!
Foi
quando Juan entendeu o verdadeiro significado da pergunta e respondeu: - Isso
mesmo, eu realmente escrevi esse poema para a virgem, Maria!
Nesse
momento um alvoroço se ouviu de novo no meio da multidão e aproveitando-se
dessa situação de bagunça Miguelito gritou alto: - Povo de Manzaneda! Quem de
vocês não sente a mesma coisa quando estão diante da virgem Maria?
As
pessoas que falavam umas com as outras, discutiam, questionavam, pararam por um
momento e olharam, dando atenção a Miguelito que continuou:
-
Quem de vocês não sente a face enrubescer, ou se sente indefeso, ou sente que
precisa da sua luz, ou sente que não é nada perto da virgem Maria? Quem de
vocês não sente tudo igualzinho ao poema quando se tem um pouquinho de fé na virgem?
Imagina um garotinho estudante de um mosteiro e educado segundo as rígidas leis
católicas, tão plenamente aplicadas pelo disciplinador frei Augusto? Eu exijo
que Juan de Castro, que agora sim teve chance de se explicar, seja libertado!
-
Liberta-o! - gritou seu Armando do meio da multidão. – Liberta meu filho!
- Liberta o garoto! - outra pessoa
gritou também.
A
multidão em coro começou a se manifestar em gritos e brados de “liberta o
garoto, liberta o garoto!”
Monsenhor
Fernando, derrotado pela manifestação da multidão, abaixou a cabeça coçando a nuca,
como se isso fosse abrandar a sua ira, e chegando-se perto de Miguelito falou
baixinho entre os dentes:
- Eu
e a santa igreja, vamos nos lembrar dessa humilhação, senhor Miguel de Cervantes
Saavedra e nem que você se esconda entre os moinhos de vento holandeses, eu
ainda vou te perseguir!
Miguelito
abriu um largo sorriso de contentamento e abriu os braços como se comemorasse
uma vitória.
- Solte Juan de Castro! - ordenou
Monsenhor Fernando.
*****
A
viagem de volta era longa, mas era muito mais feliz do que havia sido a vinda.
Mas apesar da felicidade, uma coisa não deixava a paz adentrar o coração de seu
Armando.
- Filho, eu estou preocupado,
porque você estava sobre juramento e mentiu dizendo que fizera aquele poema
para a virgem Maria...
- Não senhor Armando - interpelou
Miguelito - ele disse que escreveu para a virgem “virgula” Maria, foi assim que
eu perguntei.
- Mas em quê isso melhora a
situação? - falou seu Armando.
- É que eu escrevi para a Maria filha
do senhor Arquibaldo nosso vizinho. E como ela tem treze anos e é tão bem
criada, eu tenho certeza que ela ainda é virgem...
- Entendeu senhor Armando - falou
sorrindo Miguelito - Maria a virgem filha do senhor Arquibaldo, ou simplesmente,
a virgem, Maria!
- Tudo bem, mas aí, você Miguel,
fez as pessoas pensarem que era da virgem Maria mãe de Jesus, que o poema
falava!
- Tudo bem senhor Armando -
respondeu Miguelito num largo sorriso. - Eu não estava sobre juramento mesmo.
Fim
Eu já tive a honra de ler o texto e telo agora!
ResponderExcluirAdorei tb as imagens no meio, dão um TCHAN. a mais! Parabéns meu amigo, é um excelente texto!
Sei bem como é essa relutância em publicar algo, ainda quero ver esse conto em um livro!
Beijos!
Puxa Camis, obrigado pela "honra", hahahahaha. Valeu!
ExcluirPuxa, André!
ResponderExcluirFoste simplesmente brilhante e ainda bem o publicaste, embora ache que ,como bem disse a Camila, fique bem também em um livro. É pra pensar,né? Tenho visto vários amigos e amigas publicando livros. Pensa nisso! abração,chica
Estou pensando nisso Chiquinha! Obrigado pelo carinho.
ExcluirOi André
ResponderExcluirLi inteirinho, e não foi nenhum sacrifício! Muito pelo contrário, foi muito bom! Parabéns! Um final surpreendente, mas com sua marca registrada kkkkkkk.
Bjos.
Hahahahaha, obrigado Lú!
ExcluirMy broder, já tinha lido esse seu conto uma vez e o reli novamente, com muito entusiasmo. Creio que o amigo devia publicá-lo, junto com outros trabalhos, num livro de contos.
ResponderExcluirAbraços renovados!
Obrigado Joe! Estou pensando nisso mesmo!
ExcluirParabéns, é uma estória e tanto.
ResponderExcluirValeu capitão! Muito obrigado por aparecer!
ExcluirOlá! Dedé, meu amigo
ResponderExcluirComecei bem a semana lendo seu carinhoso comentário em meu blog.Obrigado pelas palavras.
Parabéns pelo excelente conto,com seu peculiar toque de humor...quando é bom, não importa o tamanho.
...dentro do contexto histórico , penso eu que no período da época medieval, a Igreja passou por um período muito difícil, pois alguns reis, visando o fortalecimento da sua autoridade receberam o direito de elegerem por sua própria conta, temos então um período onde muitos membros da hierarquia da Igreja não tinham uma devida preparação para assumirem sua missão, por isso muitas atrocidades foram cometidas.Valendo-se de sua crescente influência religiosa, a igreja passou a exercer importante papel em diversos setores da vida medieval, servindo como instrumento de unificação, diante da “fragmentação política”, exercendo profunda influência no desenvolvimento da inquisição, e anteciparam-se na aplicação da forma física e da pena de morte aos hereges; a autoridade eclesiástica agia energicamente, provocando certos abusos e aplicando o castigo previsto nas respectivas leis e costumes,motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais.
Dito isso, uma vírgula no lugar errado pode por ou tirar a lenha na fogueira.Porque uma vírgula pode mudar tanto um contexto quanto salvar alguém ou um planeta.
Neste sentido, a vírgula é também uma questão de consciência: sócio, político e cultural. Então não se trata apenas de questão social de leitura, mas também de leitura da sociedade, e isso Mguelito soube fazer bem para se salvar, e os conhecimentos da época ainda não permitiam uma difusão de conhecimento nos moldes atuais, mas com certeza a iniciativa foi sobremaneira importante para uma fase inicial de compreensão da arte de interpretar.
ah... Miguelito , autor do maior livro da terra ( humilde opinião minha)...D.Q.
é isso... não quero monopolizar seu espaço.
Obrigado pelo carinho
Boa semana
Abraços
Eita Felisão! Vc é o cara dos comentários! Muito obrigado. Fiquei muito feliz!
ExcluirAhhhhhhhhhh esse conto é da hora!! Eu já o tinha lido e achei uma grande sacada, porque o título te leva pra um lugar e o texto pra outro. Já o fechamento é genial e surpreendente.
ResponderExcluirTexto gostoso de ler e aí André revela a capacidade que tem deprender o leitor até o fim.
Plausível também pela pesquisa de época e que o autor representou com maestria.
* Ai amigo, ainda to lendo aquele que me enviou... kkkkkkk Lerdinha, lerdinha.
Mas por enquanto tá legal, mas tenhos algumas ressalvas. Depois a gente se falar em off.
bacios
Que bom que gostou Lú!
ExcluirVocê é escritora e sabe das coisas!
ANDDRÉ: Já estudei um pouco "o papel da igreja na época medieval"! Descobri coisas que nunca esperava! Era uma época repressiva, dominadora...!A igreja era totalmente ditadora!
ResponderExcluirSeu conto têm tudo haver com a época mesmo!O interessante é o seu estilo, mistura coisas cruciais com humor, e o final então....bem engraçado e inesperado....parabéns, grande autor!!Vc têm tudo para ser um maravilhoso escritor!!
Beijos e bom início de semana!!
Obrigado Mariinha fico contente que o conto tenha te agradado!
ExcluirValeu!
Um texto muito bem escrito. Gostei muito.
ResponderExcluirUm abraço e uma boa semana
Obrigado elvirinha, boa semana pra vc aí também minha amiga!
ExcluirComo sempre se superando hein amigão! Andei comentando nos posts anteriores mas depois vi sua explicação que estava numa baita falta de tempo e aí compreendi porque deixou alguns sem resposta.
ResponderExcluirTambem andei bem ocupado e ''de férias'' da Internet mas agora estamos de volta.
Depois vou te mandar um e-mail pra que possamos trocar idéias e te passar algumas idéias de textos para que vc me faça uma supervisão antes de iniciar minha vida de blogueiro, rsrs...
Otimo texto , Parabéns e vida longa ao Verdades e Bobagens e principalmente a vc !!
Rodrigão meu amigo! Manda logo esses seus textos e vamos inaugurar logo esse seu blog pô! Ja tá na hora... Larga de preguiça!
ExcluirAplausos, aplausos aplausos. A contextualização foi perfeita, o clima de suspense também. Pena que a igreja católica ainda não saiu da Idade Média, e hoje resolveu excomungar o padre Beto de Bauru, por fazes declarações publicas de apoio aos homossexuais. Parabéns
ResponderExcluirAbração
Obrigado Wand! E realmente a igreja católica está mesmo atrazadinha!
ExcluirEu tava aflita querendo logo saber que raios de pergunta esse garoto iria fazer pra livrar o outro da fogueira. Genial a saída.
ResponderExcluirMuito bom, senhor escritor.
Beijo!
Hehehehehehehehe brigadp MíLi!
ExcluirAndré,eu simplesmente adorei seu conto!Me senti num daqueles filmes medievais.Muito bem elaborado, amarrado e contexto histórico perfeito!Surpreendente a identidade do Miguelito tb,que deu um toque especial a trama.Parabéns e nos traga mais contos seus sempre!bjs,
ResponderExcluirOi Anne! Que legal vc por aqui! Puxa que bom que o conto te agradou! Obrigado, volte sempre aqui tá!
Excluir
ResponderExcluirOlá André,
O conto é ótimo, bem criativo e envolvente.
Logo vi que a Maria era outra-rsrsrs. A vírgula foi peça chave para salvar o pequeno Juanito. Grande sacada!
Parabéns! Adorei ler.
Ótimo feriado.
Abraço.
Hehehehehehe obrigado Verinha!
ExcluirOlá meu amigo, bom dia!
ResponderExcluirAdorei o conto!
Ah! Só que o título entregou...KKK!!!
Vc é bem eclético, hein! Além de um ótimo cronista e romancista, é um ótimo contista tb :-)
Soube muito bem amarrar a trama e pude até imaginar as cenas (muito boa a sua descrição dos personagens e da época).
E inserir o Miguel de Cervantes na trama foi muito legal!
Um grande abraço meu amigo!
Adelisa.
http://adelisa-oquerealmenteimporta.blogspot.com.br/
Você é sabidona hein Adê! As outras pessoas não se ligaram nisso!
ExcluirAndré, muito mais fácil ler que escrever um conto assim (rss). Você foi ótimo e nos envolveu até o finalzinho. Confesso que o título não me deu a resposta porque fui logo começando a leitura. E valeu! Parabéns! Bjs.
ResponderExcluirObrigado Mary! Realmente ele deu trabalho pra escrever, mas valeu a pena!
Excluirrsrsr....Marias mal faladas...shuahsuahs
ResponderExcluirAnônimo, vc deve ser a Aclin voltando dos mortos!!!! Certeza!
ExcluirE aí, mano André! Rapaz, ainda não consegui ler seu livro, mas li o conto inteirinho, viu! Até porque se começa é difícil parar, né! Hehehehe... Não sou expert no assunto, mas achei a narrativa muito boa e a descrição do ambiente da época ótima. Parabéns!
ResponderExcluirAss. Rodrigo Moreira
Valeu Rodrigão, hahahahaha, pelo menos o conto é menorzinho né?
ExcluirPerdi o comentário e não lembro mais o que escrevi.
ResponderExcluirAcho que eu falava que um texto do meu gosto particular deve ser entrelinhado, alinhavado com linhas desconhecidas ou remententes à ideia de liberdade e contra as opressões, contra a liberdade de opressão. Tem isso no seu texto. Você escreve bem e é uma pessoa cheia de amor e de vida.
Aplausos!
F.
Puxa Rebel! Obrigado meu amigo!
ExcluirOlá, André.
ResponderExcluirMuito bom! Quanta diferença uma sagaz vírgula pode fazer. Acordar nosso Quixote destemido e enfrentar os apequenados gigantes. Pena que ainda hoje o falso moralismo, o fanatismo e todo tipo de fundamentalismo, ainda brade os desatinos humanos em nome de caricaturas de Deus.
Obrigado por sua visita e comentário lá no blog.
Um grande abraço e um bom fim de semana.
Hehehehehehe amigo Antonio, só o Servantes mesmo pra sair com essa classe dessa enrascada!
ExcluirRealmente infelismente o falso moralismo ainda impera, e em lugares onde não deveria existir!
Um abraço!
Caro Dedé, qualquer elogio que eu tecer a você aqui será chover no molhado, mas já está mais que na hora de você se lançar no mundo literário com uma literatura de sua autoria, tenho te acompanhado nesse tempo todo em que vc tem o teu blog, e presenciei in loco o seu crescimento intelectual e literário, e o que tenho a dizer é: estás de parabéns pelo teu divino talento, fico feliz pela tua ascensão na escrita, e sempre estarei te acompanhando com prazer, parabéns meu amigo, que Deus continue te abençoando.
ResponderExcluirEita Chengão! Obrigado meu amigo. Estou trabalhando pra isso. Valeu!
ExcluirBrilhante André!
ResponderExcluirConfesso que lá pelo meio do texto eu tive a preocupação de que ele fosse terminar com alguma lição de moral ou exaltação religiosa, todavia, você me surpreendeu, de novo! O teu senso de humor no final do texto foi ótimo!
Obrigado por ter me proporcionado esta leitura tão agradável!
Abraço forte pra ti amigo!
http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2013/05/de-tanto-bater-meu-coracao-parou.html
Hahahahahahahahaha gostei do "me surpreendeu de novo!" Hahahahahaha, um abração Brunão!
ExcluirOi André eu amei é o tipo de leitura que eu gosto !!! Parabéns você está se superando cada dia !! Beijos
ResponderExcluir