sábado, 6 de junho de 2020

Anjos









Zezé é um menino.
Um menino que não tem celular, não consta nos dados do Google, não tem conta no Facebook e que não sabe o que é watsapp.
Zezé é um menino que vive à margem da sociedade. Uma margem, ao contrário do que a maioria pensa, feita de multidões e multidões de rostos invisíveis.
Ele não entende nada sobre esquerda, direita, democracia, socialismo, nazismo e não sabe qual é o tipo de governo do Brasil. Ele não sabe quem é o presidente, quem é governador e muito menos o ministro da justiça. Na verdade, ele não sabe o que é um governador, nem o que faz um prefeito ou um vereador.  
Zezé não sabe nem de onde veio, imagina se iria ficar preocupado em decorar nomes, de pessoas tão distantes.
Nem em sua lembrança mais antiga ele reconhecia um rosto para chamar pai. 
De vez em quando, ao examinar essas lembranças antigas, ele via em alguns flashes uma mancha disforme, que sorria para ele. “Essa mancha deve ser a minha mãe.” – pensava, coçando a cabeça.
Ele, com vergonha, sempre acompanhado de uma risada nervosa, brinca dizendo para todo mundo que é filho de pai sem mãe e de mãe sem pai.
Zezé foi criado por uma irmã mais velha; Marcia, apenas três anos a mais que o irmão, um dia se viu abandonada não sabe por quem, de mãos dadas a um garoto, de não mais de três anos, andando com ela pelas ruas da cidade.
Juntos, eles cresceram comendo restos de comida encontrados em latas de lixo, dormindo em terrenos baldios, ou nos jardins das praças. Eles se cobriam com jornal e trapos velhos, e quando o frio apertava muito, eles cheiravam cola para sumir desse mundo um pouco.
Em um lindo dia de primavera, acharam o corpo de Marcia num matagal atrás do campo de futebol, comida pelos humanos e pelos vermes.
A polícia achou normal, afinal, tratava-se apenas uma menina de rua.
Ela foi enterrada como indigente, e com o caixão lacrado.
Zezé nunca ficou sabendo da passagem de sua irmã. Em sua cabeça, ele imaginava que ela tinha encontrado um homem bom, e que se esquecera dele, assim como seu pai e sua mãe um dia se esqueceram.
Andando sozinho em meio à multidão, Zezé reparou que de repente as pessoas estavam usando máscaras.
- Dona, - perguntou a uma mulher que saía de uma loja – por que todo mundo está usando esse negócio na cara?
- Você não tem máscara? – respondeu a mulher examinando-o de cima abaixo. – Não está com medo do covid?
            - Medo de quem?
            - Do corona moleque! Você não tem medo corona? Você tem que se cuidar!
            - Quem é esse corona?
            - O vírus chinês! Onde você estava nos últimos três meses, que não sabe disso!
            “Onde eu estava?” – pensou Zezé confuso.
Depois do sumiço de sua irmã, Zezé continuou sua vida. Uma vida difícil, porém, para ele, feliz! Afinal, ele já tinha quatorze anos e uma mulher: Carol.
Carol, tinha treze anos e os dois tinham um filho de quatro meses.
- Por que sô feliz? - perguntava Zezé para todos que diziam que ele andava sorrindo pela rua. – Sô feliz porque eu sô pai!  
Depois que o neném nasceu, a comida encontrada nas latas de lixo não estava dando para os três, por isso Zezé começou a fazer pequenos furtos para comprar marmitas.
Ele sabia que era errado roubar, pelo menos ele ouviu o padre falando isso em uma missa. Mas será que o padre sabia o que era passar fome?
De vez em quando eles mendigavam no calçadão ou na porta do mercadão. Carol, desnutrida, não tinha muito leite, mas Zezé ouviu um homem falando na banca de jornais, que frutas e legumes ajudavam a mulher a ter mais leite.
Zezé sabia que as pessoas jogavam muitas verduras boas no lixo do mercadão, por isso sempre passava ali em busca de alguma coisa que desse para comer e quando estava com sorte encontrava além das frutas e verduras, alguns pacotes de bolacha.
 Uma vez uma mulher que viu ele e Carol revirando o lixo e acharem um pacote de bolachas, disse para eles não comerem, porque a bolacha estava vencida e poderia fazer mal.
Zezé deu risada e virando-se para Carol falou:
- Faiz mal é a barriga da gente doê e a gente não tê nada pra comê.
- Liga não – respondeu Carol – essa mulhé deve sê lôca!
Na rua, vários moleques que viviam pela cidade, acabavam por formar uma família, que dormia, comia, cheirava cola e conversava junto. Uma vez, em uma noite de muito frio, eles fizeram uma fogueira dentro de um tambor na praça, e ficaram em volta jogando conversa fora.
- Hoje uma mulhé me falô que tem um chinês aí quereno matar todo mundo. – disse Zezé a seus amigos.
- É... – respondeu Carlim. – Eu também escutei essa conversa.
- Um homem lá na porta da padaria disse que eu tinha direito a ganhar seiscentos reais do governo. – falou Craudia.
- O quê? E cê acredita nessa besteira, Craudia! – falou Zezé se levantando e caminhando até mais perto do tambor. – Se o governo dar esses seiscentos reais pra você eu dou o rabo!
Enquanto os moleques davam risada da fala de Zezé, uma viatura encostou atrás da igreja, e dois policiais chegaram furtivamente até onde eles estavam.
 Zezé, Jão, Carlim, Cráudia, Alê, Xixa, Carol e outros tantos moleques se assustaram quando os policiais gritaram:
- Polícia! Ninguém se mexe!
- Calma senhor! – falou um dos moleques.
- O que vocês estão fazendo aqui e sem máscara!
- Desculpa senhor! Mas a gente não tem masc...
- Cala a boca moleque! Todo mundo tem máscara!
- Mas a gente não tem nem comida! - falou Zezé. Como é que a gente vai tê máscara?
- Já falei para calarem a boca! – gritou o policial. – Vocês não sabem que está proibido aglomeração?
- Proibido o quê?
- Aglomeração, moleque! Não sabe não?
Os meninos se entreolharam sem saber o que estavam fazendo de errado, e não entendendo nada da conversa do policial.
- E esse neném? – gritou mais uma vez o policial. - Vamos levar pro juizado!
- Meu filho não! - Falou Carol agarrando-se ao bebê.
- Vai ele e você! – respondeu o policial retirando o bebê das mãos de Carol enquanto perguntava. - Quantos anos você tem menina?
            Carol sem responder a idade, se atracou com o policial, e os outros moleques vendo a reação da amiga, também entraram na briga. Foi uma confusão!
Os dois policiais foram cercados, e para se defenderem, sacaram suas armas apenas para tentar impressionar e manter o respeito dos moleques, mas de repente ao tentar impedir o ataque de um dos meninos, um policial puxou o gatilho por instinto e atirou à esmo.
            Zezé que já tinha visto muita coisa nessa vida, viu sua mulher e seu filhinho caírem no chão.
Justamente quando Carol conseguiu retirar o bebê das mãos do policial, a arma foi disparada. O tiro atravessou os dois.
Os moleques foram para cima dos policiais e Zezé com uma paulada movida a muita raiva, acertou a nuca de um dos policiais, que caiu morto ao chão.
As pessoas chamaram mais policiais, chamaram a televisão, gravaram com seus celulares, postaram no Facebook, no Instagram, no Youtube e repassaram esses vídeos incansavelmente pelo Watsapp!
Os moleques ao final da confusão, foram presos e encaminhados para a delegacia mais próxima, para depois serem encaminhados para as instituições que cuidam de menores infratores.
Um jornal noticiou que a população havia reagido aos policiais porque estava revoltada contra governo federal, outro jornal disse que essa atitude era associada a segunda onda, agora de pobreza e dificuldades financeiras, que estava chegando após a pandemia.
Pessoas, todas donas da razão, brigaram em suas redes sociais dizendo que o presidente já havia dito que isso aconteceria, outros compartilhavam o vídeo da prisão dos moleques dizendo que eles eram de esquerda, de direita, armamentistas, revoltados, contra o governador, contra o prefeito, contra o presidente, e que principalmente, o mais grave de tudo! Eles estavam aglomerados e não estavam usando máscaras!
Hoje Zezé está preso. Deflorado, surrado, usado, pisado. Considerado um maldito por ter matado um policial.
Na detenção para menores infratores ele sonha com o dia em que vai sair, e que vai ver a luz do dia novamente.
Ele sonha em encontrar alguém que goste dele tanto quanto Carol gostava. Ele sonha em ter outro filho. Sonha também com sua irmã.
A saudade bateu em seu coração e ele deixando cair mais uma lágrima em seu rosto, deseja que Marcia esteja em um lugar feliz, com um homem bom ao seu lado.
Zezé sonha em um dia, ainda conhecer seu pai e sua mãe.
Ele pede, não sabendo bem para quem, proteger seus pais e seus amigos contra o tal chinês.
Seus hematomas doem, suas costas, suas costelas, sua cabeça... Tudo dói, mas, mesmo assim ele sonha.    
Afinal, ele é criança, e crianças sonham acordadas antes de dormir.
Sonhos de criança com as fantasias de criança.
Apesar de tantas feridas causadas pela sua pequena vida, a maldade ainda não impera em seu coração, suas revoltas são muito mais por instinto do que por maldade, pois mesmo com toda sua história, ele não deixa de ser apenas uma criança de quatorze anos.
Uma criança que sorri enquanto sonha. Que sonha com dias melhores.
E que quando consegue dormir, sonha com os Anjos!
         




5 comentários:

  1. Nooooooooooooooooooossa, fiquei arrepiada de tanta emoção. Pior que é bem real pra tantos Zezés da vida.Que tristeza! Muito bem contado e escrito,como sempre, do teu jeitinho que nos agrada! abração,chica

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  2. Meu Deus, André! Estou com um aperto no peito e os olhos rasos de água. Por me lembrar que o Zezé não é filho único não. Quantos milhares de Zézés existem neste mudo caga dia mais cruel e egoísta.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  3. Uma história impressionante
    Um abraço

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  4. Infelizmente é assim mesmo. Quando teremos um governo decente, de direita ou esquerda pra acabar com isso? Só quando Deus quiser, estamos a esmo. Abraços.

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  5. Triste realidade de tantos Zés que, neste ano de 2020, ainda vivem largados e sem perspectivas.
    Precisamos de mais gente dando voz e vez a estas pessoas!

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