Hoje escutei o álbum branco dos
Beatles.
Eu tinha uma trava emocional com
ele.
Quando era criança, meus pais não se
davam muito bem. Eles viviam se separando e se juntando. E numa dessas
separações, eu vim parar em Barretos, que é a cidade de meus avós e vários
tios.
Nessa época eu estava triste. Era um
menino meio apagado, que não pensava muito em quase nada.
Essa época, na verdade, é um pouco
obscura na minha vida. Eu sei que da casa dos meus avós, eu fui para a casa de
um anjo que era a minha tia Mariana! Ela foi uma das pessoas mais amáveis que
eu conheci na vida. Linda, educada, alegre, carinhosa... Ela era a tia que todo
mundo deveria ter.
Mas;
porém, contudo, entretanto, o tio Kleib marido dela, não era muito legal! Eu
não me lembro dele ter se sentado e conversado comigo em nenhum momento. Ele só
se dirigia a mim quando todos da família estavam conversando. Particularmente,
parece que eu não existia.
Uma noite, o tio Kleib, que gostava de
ficar sentado na sala tomando cerveja e assistindo TV, me chamou e falou quase
rosnando:
— Grrrrr Andrrrrré; pega grrrr
aquele disco de capa grrrrrrr brrrranca ali!
Eu peguei o disco e entreguei a ele,
que ficou um tempo olhando para a capa. Depois abriu e olhou o encarte do
disco, depois escolheu entre os dois discos que estavam acomodados na parte de dentro.
“Nossa, — eu pensei — dois discos em
uma capa só!”
Eu na verdade, acho que nunca tinha
manejado um disco. Lembro que em casa não tinha aparelho de som e muito menos
discos.
Então o tio Kleib me estendeu um dos
discos e apontou com o beiço para o toca-discos.
Eu fiquei olhando para a cara dele
feito um bobo, porque não sabia o que fazer.
— Grrrrrrrr, Andrrrrré! Pega esse
disco aqui e coloca pra tocarrrrrr.
Eu peguei, fui até o aparelho de
som, mexi aqui e ali, até que ele fez um barulho.
— Abaixa. — ele rosnou.
Eu me abaixei assustado e ele rolou
de rir.
— Você nunca mexeu com um toca-discos?
— Hã!? T... to... toca discos?
O tio Kleib se levantou, foi até o
toca-discos e colocou um dos LPs para tocar.
Ele colocou faixa por faixa e
escutou apenas alguns acordes de cada uma; depois desligou o toca-discos e saiu
resmungando que os discos de seus filhos eram horríveis.
Ele não me ensinou, mas eu o vi ligando
o som e aprendi. Por isso no dia seguinte eu mesmo coloquei o disco para tocar.
Os dois discos. Sem parar, de um lado, do outro, do outro, do outro, do outro e
do outro.
Meus pais reataram o casamento, e
ainda bem que foi até que a morte os separasse dessa vez.
Meu pai faleceu em 1996, e minha mãe
sofreu muito. Eles estavam muito bem nessa época.
Mas... Não sei por que, eu tinha um
ranço enorme desse disco branco dos Beatles. Nunca mais consegui escutá-lo. Parece
que só de olhar para ele, alguma coisa ruim se remexia dentro de mim.
Até hoje!
Hoje coloquei o disco branco dos Beatles
para tocar e vi o tanto que a gente é refém de nossas memórias e crenças
limitantes.
O disco é muito bom! Eu não me
lembrava de algumas músicas e me surpreendi.
Eu tenho toda a discografia dos
Beatles, mas o disco branco nunca havia sido tocado. Trinta anos esperando aqui
em casa, e pelo menos quarenta na minha vida.
Como a gente cria monstros, né?
Somos especialistas nisso... Esses
monstros fazem mal, mas temos que chamar nossos caça fantasmas internos e
exterminá-los.
Escutem! O álbum branco dos Beatles
é muito bom!
Outra coisa, pra acabar: Com o
tempo, depois que eu cresci, eu aprendi algumas coisas sobre o tio Kleib e a
tia Mariana. Ela era muito mais anjo do que eu imaginava, e ele... Bom, antes
dele morrer, a gente até fez uma amizade.