sábado, 2 de novembro de 2024

O álbum branco




               Hoje escutei o álbum branco dos Beatles.

               Eu tinha uma trava emocional com ele.

        Quando era criança, meus pais não se davam muito bem. Eles viviam se separando e se juntando. E numa dessas separações, eu vim parar em Barretos, que é a cidade de meus avós e vários tios.

            Nessa época eu estava triste. Era um menino meio apagado, que não pensava muito em quase nada.

            Essa época, na verdade, é um pouco obscura na minha vida. Eu sei que da casa dos meus avós, eu fui para a casa de um anjo que era a minha tia Mariana! Ela foi uma das pessoas mais amáveis que eu conheci na vida. Linda, educada, alegre, carinhosa... Ela era a tia que todo mundo deveria ter.

Mas; porém, contudo, entretanto, o tio Kleib marido dela, não era muito legal! Eu não me lembro dele ter se sentado e conversado comigo em nenhum momento. Ele só se dirigia a mim quando todos da família estavam conversando. Particularmente, parece que eu não existia.

            Uma noite, o tio Kleib, que gostava de ficar sentado na sala tomando cerveja e assistindo TV, me chamou e falou quase rosnando:

            — Grrrrr Andrrrrré; pega grrrr aquele disco de capa grrrrrrr brrrranca ali!

            Eu peguei o disco e entreguei a ele, que ficou um tempo olhando para a capa. Depois abriu e olhou o encarte do disco, depois escolheu entre os dois discos que estavam acomodados na parte de dentro.

            “Nossa, — eu pensei — dois discos em uma capa só!”

            Eu na verdade, acho que nunca tinha manejado um disco. Lembro que em casa não tinha aparelho de som e muito menos discos.

            Então o tio Kleib me estendeu um dos discos e apontou com o beiço para o toca-discos.

            Eu fiquei olhando para a cara dele feito um bobo, porque não sabia o que fazer.

            — Grrrrrrrr, Andrrrrré! Pega esse disco aqui e coloca pra tocarrrrrr.

            Eu peguei, fui até o aparelho de som, mexi aqui e ali, até que ele fez um barulho.

            — Abaixa. — ele rosnou.

            Eu me abaixei assustado e ele rolou de rir.

            — Você nunca mexeu com um toca-discos?

            — Hã!? T... to... toca discos?

            O tio Kleib se levantou, foi até o toca-discos e colocou um dos LPs para tocar.

            Ele colocou faixa por faixa e escutou apenas alguns acordes de cada uma; depois desligou o toca-discos e saiu resmungando que os discos de seus filhos eram horríveis.

            Ele não me ensinou, mas eu o vi ligando o som e aprendi. Por isso no dia seguinte eu mesmo coloquei o disco para tocar. Os dois discos. Sem parar, de um lado, do outro, do outro, do outro, do outro e do outro.

            Meus pais reataram o casamento, e ainda bem que foi até que a morte os separasse dessa vez.

            Meu pai faleceu em 1996, e minha mãe sofreu muito. Eles estavam muito bem nessa época.

            Mas... Não sei por que, eu tinha um ranço enorme desse disco branco dos Beatles. Nunca mais consegui escutá-lo. Parece que só de olhar para ele, alguma coisa ruim se remexia dentro de mim.

            Até hoje!

            Hoje coloquei o disco branco dos Beatles para tocar e vi o tanto que a gente é refém de nossas memórias e crenças limitantes.

            O disco é muito bom! Eu não me lembrava de algumas músicas e me surpreendi.

            Eu tenho toda a discografia dos Beatles, mas o disco branco nunca havia sido tocado. Trinta anos esperando aqui em casa, e pelo menos quarenta na minha vida.

            Como a gente cria monstros, né?

            Somos especialistas nisso... Esses monstros fazem mal, mas temos que chamar nossos caça fantasmas internos e exterminá-los.

            Escutem! O álbum branco dos Beatles é muito bom!

            Outra coisa, pra acabar: Com o tempo, depois que eu cresci, eu aprendi algumas coisas sobre o tio Kleib e a tia Mariana. Ela era muito mais anjo do que eu imaginava, e ele... Bom, antes dele morrer, a gente até fez uma amizade.

 

 

17 comentários:

  1. Anônimo2.11.24

    Belo texto. Bem acima das crenças limitantes...

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    1. Olá! Obrigado!
      Então... essas barreiras tem que ser quebradas.
      Um abraço!

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  2. Que linda crônica,André! Adorei o sotaque do Tio Kleib,rs... E realmente, criamos coisas nas nossas lembranças e nos atrapalham. Por isso ,faxinar a mente é preciso! abraços, chica

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    1. Olá Chiquinha!
      Na verdade não era sotaque, ele falava entre os dentes, sabe? Parecia que estava com raiva do mundo.
      Obrigado por aparecer.
      Um lindo fim de semana pra vocês aí!

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  3. Boa noite de sábado, André!
    Sei bem como é se sentir como você se descreveu
    Por outro lado, meus tios todos, sem nenhuma exceção, todos foram ótimos para mim... minha avó teve doze filhos...
    Gostei muito como disvire8 sua crônica, prendeu a atenção do leitor.
    Tenha final de semana abençoado!
    Abraços fraternos

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    1. Olá Roselia, tudo bem?
      É... tem coisas que marcam a gente né? E a gentre cria fantasmas que realmente não existem.
      Que bom que gostou da crônica.

      Um abração.

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  4. Anônimo2.11.24

    Minha irmã Mariana era maravilhosa, sua casa para mim, um oásis.
    Que bom que você aprendeu com sua história e hoje produz textos edificantes.
    Continue escrevendo o real e o imaginário.
    Abraços.

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    1. Olá Tio Hugo!!!
      Realmente a tia Mariana era o máximo!!
      Um abração!

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  5. Anônimo2.11.24

    Eu também gostava muito de minha cunhada Mariana. (Landa)

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    1. Oi tia Landa! Que bom que apareceu aqui.
      Um abração! Cuida do velhinho aí!

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  6. Rapaz, que história interessante. Essas dramas familiares sempre nos marcam de uma forma ou de outra. Minha experiencia quando criança com toca-discos foi totalmente diferente, já que lá em casa tinha uma vitrola alemã e muitos discos que eu ficava ouvindo até minha mãe dizer "Deliga essa vitrola, Eduardo, você vai acabar quebrando e seu pai vai te bater..." até já escrevi sobre isso lá no meu Crônicas.

    Confesso que não sou bom conhecedor da história dos Beatles. Claro, conheço as músicas clássicas, os mega sucessos mas nunca tinha ouvido falar desse tal de "álbum branco". De fato, nunca tinha ouvido essa música do vídeo. É boa.

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    1. Dudu, essas histórias de família ficam na nossa cabeça né? As vezes fazem mal, quando a gente não amaduresce direito.
      Escuta o disco todo. Vai gostar.

      Um abraço, meu amigo.

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  7. Nossa André, eu confesso que fiquei gelada lendo o texto e esperando o desfecho para saber o motivo da sua trava emocional com esse álbum dos Beathes que gosto tanto!! Ufa, ainda bem que tudo correu bem e a trava emocional era por questão familiar e não por ojeriza do disco...rsrs
    Sabe, seu tio realmente era assustador, ao passo que sua tia um doce de pessoa, um anjo. Geralmente um casal é feito de opostos para equilibrar a relação. Mas ainda bem que no fim ainda deu para você fazer uma amizade com o seu tio.
    Porém, voltando ao álbum Branco, você inseriu a minha canção favorita do disco que é While My Guitar Gently Weeps. A versão remasterizada ficou ainda mais fantástica. Eu amo esse rock psicodélico dos Beathes, choroso, entristecido e essa é a canção que mais transparece essa sensação para mim, a despeito das demais também serem melancólicas.Mas se você quiser aumentar o astral Revolution é sensacional!!
    Eu conheci a vitrola na casa da minha avó quando era bem pequena. Meus tios e tias , na ocasião adolescentes , tinham vários discos, mas não dos Beathes. Eram dos Pholhas, Renato e seus Blue Caps e outros cantores brasileiros que cantavam em inglês na época para fazer sucesso.
    Aqui fiz uma viagem de memórias amigo, muito obrigada!!
    E agora me deu vontade de ouvir The Doors e The Moody Blues. Eu viajo nessas bandas.
    Valeu mesmo querido, desejo uma linda e especial semana musical!!!

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    1. Oi Adriana.
      São travas que temos e nem sabemos. As vezes só enfrentando pra ver que são monstrinhos de brinquedo, que quando desmontados não fazem mal a ninguém.
      Sim... No final eu e o tio Kleib até nos demos bem.
      Um abração minha amiga!

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  8. Existem álbuns que mudam ou transforma as nossas vidas!

    Beijos e Abraços,
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    1. Verdade, Teresa.
      E que bom que eles existem ,é?

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