quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Bate papo literário: Bagagem intelectual

 



Quando eu era menino, mais ou menos com 10 anos, eu comecei a frequentar a biblioteca da minha escola. Lá tinha uma moça, que ficava dando palpites sobre qual livro eu deveria ler, e que depois de muito tempo eu descobri que ela não era "tia da biblioteca", mas sim: A Bibliotecária.

Essa moça indicava de qual estante da biblioteca eu deveria escolher o livro que iria ler, e quando eu via um livro interessante em outra estante, ela dizia: "Não André, essa estante ainda não é para você."

Com o passar do tempo ela me dizia que agora eu poderia pular para a outra estante, porque eu já estava no nível de me divertir com esses outros livros. E quando fazia isso, ela sempre pegava um dos livros da nova estante e falava: "Você vai começar por esse."

Eu me lembro de que em algumas vezes eu achava ela folgada; mas como eu sempre fui um menino educado, eu lia todos que ela indicava.

Um dia quando eu fui devolver um livro ela me disse que finalmente eu poderia escolher um livro da prateleira: Literatura clássica européia, e me deu um monstro de um livro, de quase 600 páginas chamado; Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas.

— Você vai começar por esse! — ela disse com um sorriso de canto de boca, enquanto marcava na ficha dos empréstimos, anotando, 20 dias.

— Vinte dias? Não... É pouco tempo.

— Não é não! Eu sei que você consegue.

Essa moça sabia das coisas. O livro era tão bom, tão empolgante, que eu li e entreguei com dias de sobra. Os três mosqueteiros praticamente me sequestraram e eu não conseguia parar de ler.

Quando entreguei o livro na biblioteca eu perguntei para ela:

— Como a senhora sabia que eu conseguiria ler em tão pouco tempo?

Ai ela me disse uma coisa que eu nunca mais me esqueci:

— André, já faz quatro anos que você vem aqui na biblioteca, e eu estou preparando você, assim como faço com todos que se interessam pela leitura, para se encantarem e terem os livros como amigos e não como um dever chato. — ela se levantou enquanto falava, foi até a estante e pegou um livro. — Porque eu faço isso? Porque um livro muito bom, pode ser chato, se você não tiver bagagem intelectual para entendê-lo. É por isso que umas pessoas amam algumas obras e outras detestam. Mas coloque na sua cabeça, — ela continuou apontando para mim, olhando por cima dos óculos — quando uma pessoas te disser que um livro clássico é ruim, na verdade, essa pessoa não teve condições intelectuais de entender o livro.

— A senhora está dizendo que não tem livro clássico com história chata?

— Não é isso que estou dizendo! — retificou ela me passando a caneta para assinar que estava levando o próximo livro, que ela havia escolhido e que eu nem sabia qual era. — O que estou te dizendo, é que mesmo que você não goste da história, todos os livros clássicos, são livros que literariamente são acima da média. Enredo, ritmo, desenvolvimento de personagens, narrativa, tudo o que tecnicamente pode-se avaliar em um livro, o clássico é nota 10; portanto, não existe livro clássico ruim.

O livro que ela havia separado pra mim, era: A ilha do Tesouro, e tem uma crônica aqui no blogue que fala só sobre ele, e sobre como a bibliotecária acertou mais uma vez.

Agora, vamos pular 40 anos à frente.

Um amigo meu, promotor de justiça, literato, conhecedor e colecionador de livros. Dono de uma biblioteca com mais de 3000 livros e gibis, que ele diz, ter lido todos mais de uma vez, um dia me disse:

— André, quando eu tinha mais ou menos 20 anos, eu li Dom Quixote e achei mais ou menos. Depois, quando eu tinha mais ou menos 40 anos, eu li Dom Quixote novamente e achei ótimo. Mas agora, semana passada, agora com 70 anos, eu li, Dom Quixote novamente e vou te confessar uam coisa; Quando eu terminei a leitura, eu fechei o livro e chorei copiosamente durante uns 15 minutos. Esse é o melhor livro que já li em toda a minha vida! E só agora eu tive bagagem intelectual para entender.

"Olha só! — eu pensei — A teoria da bibliotecária da minha infância sendo provada, depois de tantos anos."



sábado, 2 de novembro de 2024

O álbum branco




               Hoje escutei o álbum branco dos Beatles.

               Eu tinha uma trava emocional com ele.

        Quando era criança, meus pais não se davam muito bem. Eles viviam se separando e se juntando. E numa dessas separações, eu vim parar em Barretos, que é a cidade de meus avós e vários tios.

            Nessa época eu estava triste. Era um menino meio apagado, que não pensava muito em quase nada.

            Essa época, na verdade, é um pouco obscura na minha vida. Eu sei que da casa dos meus avós, eu fui para a casa de um anjo que era a minha tia Mariana! Ela foi uma das pessoas mais amáveis que eu conheci na vida. Linda, educada, alegre, carinhosa... Ela era a tia que todo mundo deveria ter.

Mas; porém, contudo, entretanto, o tio Kleib marido dela, não era muito legal! Eu não me lembro dele ter se sentado e conversado comigo em nenhum momento. Ele só se dirigia a mim quando todos da família estavam conversando. Particularmente, parece que eu não existia.

            Uma noite, o tio Kleib, que gostava de ficar sentado na sala tomando cerveja e assistindo TV, me chamou e falou quase rosnando:

            — Grrrrr Andrrrrré; pega grrrr aquele disco de capa grrrrrrr brrrranca ali!

            Eu peguei o disco e entreguei a ele, que ficou um tempo olhando para a capa. Depois abriu e olhou o encarte do disco, depois escolheu entre os dois discos que estavam acomodados na parte de dentro.

            “Nossa, — eu pensei — dois discos em uma capa só!”

            Eu na verdade, acho que nunca tinha manejado um disco. Lembro que em casa não tinha aparelho de som e muito menos discos.

            Então o tio Kleib me estendeu um dos discos e apontou com o beiço para o toca-discos.

            Eu fiquei olhando para a cara dele feito um bobo, porque não sabia o que fazer.

            — Grrrrrrrr, Andrrrrré! Pega esse disco aqui e coloca pra tocarrrrrr.

            Eu peguei, fui até o aparelho de som, mexi aqui e ali, até que ele fez um barulho.

            — Abaixa. — ele rosnou.

            Eu me abaixei assustado e ele rolou de rir.

            — Você nunca mexeu com um toca-discos?

            — Hã!? T... to... toca discos?

            O tio Kleib se levantou, foi até o toca-discos e colocou um dos LPs para tocar.

            Ele colocou faixa por faixa e escutou apenas alguns acordes de cada uma; depois desligou o toca-discos e saiu resmungando que os discos de seus filhos eram horríveis.

            Ele não me ensinou, mas eu o vi ligando o som e aprendi. Por isso no dia seguinte eu mesmo coloquei o disco para tocar. Os dois discos. Sem parar, de um lado, do outro, do outro, do outro, do outro e do outro.

            Meus pais reataram o casamento, e ainda bem que foi até que a morte os separasse dessa vez.

            Meu pai faleceu em 1996, e minha mãe sofreu muito. Eles estavam muito bem nessa época.

            Mas... Não sei por que, eu tinha um ranço enorme desse disco branco dos Beatles. Nunca mais consegui escutá-lo. Parece que só de olhar para ele, alguma coisa ruim se remexia dentro de mim.

            Até hoje!

            Hoje coloquei o disco branco dos Beatles para tocar e vi o tanto que a gente é refém de nossas memórias e crenças limitantes.

            O disco é muito bom! Eu não me lembrava de algumas músicas e me surpreendi.

            Eu tenho toda a discografia dos Beatles, mas o disco branco nunca havia sido tocado. Trinta anos esperando aqui em casa, e pelo menos quarenta na minha vida.

            Como a gente cria monstros, né?

            Somos especialistas nisso... Esses monstros fazem mal, mas temos que chamar nossos caça fantasmas internos e exterminá-los.

            Escutem! O álbum branco dos Beatles é muito bom!

            Outra coisa, pra acabar: Com o tempo, depois que eu cresci, eu aprendi algumas coisas sobre o tio Kleib e a tia Mariana. Ela era muito mais anjo do que eu imaginava, e ele... Bom, antes dele morrer, a gente até fez uma amizade.